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Gordas mentiras

Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 26 nov 2019, 19h41 - Publicado em 28 dez 2018, 07h00

Sol, mar, fevereiro de 1971 em Búzios, Rio de Janeiro. O deputado cassado Renato Archer e alguns convidados, o escritor Antonio Callado entre eles, encerravam um passeio de lancha quando, já perto da praia, viram “alguém, uma moça” (escreveu Callado, mais de vinte anos depois) “que nadava firme em nossa direção”. Era Eunice Paiva, mulher do deputado igualmente cassado Rubens Paiva, que, “cara alegre, molhada de mar”, subiu a bordo. “Eunice andara preocupada”, prosseguiu Cal­lado. “Rubens fora detido pela Aeronáutica dias antes e nenhuma notícia tinha chegado à família. Mas agora Eunice, que fora também presa mas em seguida liberada, podia respirar tranquila, nadar em Búzios, tomar um drinque com os amigos, pois acabara de estar com o ministro da Justiça, ou da Aeronáutica, que lhe havia garantido que Rubens já tinha sido interrogado, passava bem e dentro de uns dois dias estaria de volta à sua casa.”

Rubens Paiva àquela altura já estava morto havia um par de semanas. Todos sabem, ou deveriam saber, que a ditadura censurou, torturou e matou. Talvez a alguns escape que também mentiu, e não foram mentiras quaisquer — mentiu mentiras gordas, oficiais, de papel passado. Eunice Paiva morreu no último dia 13, mesmo dia do cinquentenário do Ato Institucional nº 5, aos 89 anos. Foi uma brava mulher, duplamente castigada — pela perda do marido e pelas mentiras do regime.

Rubens Paiva teve seu mandato de deputado alvejado na primeira lista elaborada pelos militares. Eleito pelo antigo PTB, era de esquerda, mas não comunista, nem a favor da luta armada. O que o levou à prisão, a 20 de janeiro de 1971, foi a interceptação de um pacote de correspondências que militantes exilados no Chile tentavam fazer chegar às suas mãos. Oficiais da Aeronáutica o apanharam em sua casa, no Leblon, e as torturas começaram na sede da 3ª Zona Aérea. Ainda naquele dia foi transferido para o Doi-Codi carioca, e até o fim do dia seguinte foi ali submetido a bordoadas, empurrões, gritos e ameaças, dos quais hoje se tem um detalhado conhecimento graças a investigações, nos últimos anos, da Comissão da Verdade e dos procuradores do Ministério Público Federal. O rádio tocava alto Jesus Cristo, de Roberto Carlos, para abafar os gritos. Eunice e a segunda dos cinco filhos do casal, Eliana, de 15 anos, detidas 24 horas depois do marido e pai, também estavam no Doi-Codi, os rostos cobertos por capuzes, sem saber que numa sala próxima, para completar o serviço, o tenente Hughes, o mais feroz dos torturadores, deitou Rubens no chão e pôs-se a sapatear em sua barriga. A morte ocorreu na noite do dia 21 para o 22 e o corpo até hoje não apareceu.

Eunice Paiva foi uma brava mulher, castigada duplamente

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A filha Eliana foi solta nesse mes­mo dia 22; Eunice, doze dias depois. E Rubens, que teria sido feito dele? Era uma pessoa conhecida, alguma explicação era necessária. No dia 23, os jornais noticiavam, como fez o Jornal do Brasil: “Terroristas metralham automóvel da polícia e resgatam subversivo”. A grande mentira entrava em campo. Um grupo armado teria emboscado, no Alto da Boa Vista, o Volkswagen em que o preso era transportado por oficiais da repressão. O carro fora metralhado até pegar fogo, e Rubens teria fugido com seus captores. Foto do Fusca calcinado ilustrava a notícia. O comando do I Exército, no dia 11 de fevereiro, expediu nota confirmando a versão, reforçada por outras notas oficiais. Difícil acreditar, mas era uma esperança de que Rubens estivesse vivo. A isso veio acrescentar-se declaração do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, de que logo ele seria solto. Eunice tinha razões para festejar com os amigos, na lancha.

A mentira do ataque ao Fusca continua oficial, pois não houve manifestação em contrário do Exército. Mas a farsa foi desmontada em 2014, quando um dos participantes contou que havia sido armada pelo major Francisco Demiurgo Cardoso, subcomandante do Doi-Codi, ao lhe ordenar: “Pegue uma equipe, leve para o Alto da Boa Vista e metralhe o carro para parecer que o prisioneiro fugiu”. Em 2014 Eunice ainda vivia, mas era outra Eunice. O Alzheimer a transformara. Um bonito (e terrível) livro de seu filho Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui, conta a história de suas lutas. O relato vai e volta, da Eunice vibrante, combatente dos direitos humanos, à Eunice atrapalhada dos anos finais. Numa de suas muitas palestras, ela disse: “A tática do desaparecimento político é a mais cruel, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Ma­ta-se a vítima e condena-se a família a uma tortura psicológica eterna”. Foi uma brava mulher.

Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615

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