Gleisi emplaca PT em dez ministérios e mostra sua força no novo governo
Após comandar a sigla no pior momento, petista assegura pastas estratégicas para o partido e se torna uma das mulheres mais poderosas da política no Brasil
Quando Luiz Inácio Lula da Silva conquistou o seu terceiro mandato de presidente apoiado por políticos de vinte partidos, incluindo aliados de peso de fora da órbita tradicional do petismo, como o vice Geraldo Alckmin e a ex-presidenciável Simone Tebet, havia muita expectativa sobre quem teria mais influência na hora do xadrez da complexa montagem do novo governo. Com todo o gabinete instalado, uma coisa ficou clara: quem mais concentrou relevância política nem aparece na foto oficial: é a deputada Gleisi Hoffmann, a presidente do PT, que emplacou nada menos que dez ministérios, incluindo pastas relevantes como Fazenda e Educação, e quase todo o primeiro time do Palácio do Planalto — da Secretaria de Comunicação da Presidência à Casa Civil.
O grande acerto de Gleisi, dizem aliados, foi conseguir abocanhar um espaço significativo para o PT sem criar nenhum atrito grave com os demais partidos, mesmo que o apetite petista tenha posto isso em risco várias vezes. Um exemplo é o Ministério do Desenvolvimento Social, considerado estratégico por comandar o Bolsa Família, uma bandeira prioritária do petismo. A pasta foi cobiçada pelo MDB de Simone Tebet, mas acabou com o ex-governador petista Wellington Dias. Na Educação, houve esforço do PT para tirar do páreo a favorita Izolda Cela (que não tem partido) e colocar o petista Camilo Santana. “Gleisi conseguiu deixar as pastas que tocam de verdade o governo, que têm maior orçamento, com o PT”, resume um antigo aliado, o deputado estadual Arilson Chiorato, ex-assessor de Gleisi no Senado e presidente do PT no Paraná, reduto eleitoral da deputada.
Mesmo fora do governo, Gleisi tem dado demonstrações de grande influência. Defendeu abertamente a manutenção da desoneração dos combustíveis depois de Fernando Haddad (Fazenda) ter dito ser contra — ele acabou recuando. Também deu uma reprimenda no União Brasil, que, apesar de ter ministérios, anunciou independência no Congresso. “Se está dentro do governo tem de entregar os votos. É um casamento. Espero que cumpram exatamente com a missão deles para dar governabilidade”, disse. Também emplacou as presidentes da Caixa (Rita Serrano) e do Banco do Brasil (Tarciana Medeiros).
Gleisi não precisa ter seu nome no Diário Oficial para mostrar poder, mas a sua atuação fora do governo está com os dias contados. Mais precisamente até dezembro, quando termina o seu segundo mandato à frente do PT — ela não pode disputar a reeleição. Deve tornar-se ministra, muito provavelmente no lugar de Márcio Macêdo, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, um dos postos mais próximos a Lula. Uma articulação possível é que Macêdo, que é deputado eleito, assuma o comando do PT. “O Márcio Macêdo está esquentando a cadeira para a Gleisi”, diz um aliado de Lula. O presidente tem as suas razões para manter, ao menos por ora, Gleisi longe da Esplanada. “Ela tem de trabalhar muito para costurar várias tendências que o nosso partido tem, e não é fácil. Mas ela faz isso com muita competência, e o papel que ela está exercendo hoje é tão ou mais importante do que qualquer outro cargo que possa ter no governo”, afirmou a mesma fonte.
Seus principais desafios à frente do PT são dar sustentação ao governo e preparar o partido para a eleição municipal de 2024 — em 2020, a sigla não elegeu prefeito em nenhuma capital. Um exemplo do trabalho pesado está em São Paulo, onde ela terá de garantir que o petismo mantenha o acordo firmado em 2022 e caminhe com Guilherme Boulos (PSOL), que apoiou o PT ao governo. Isso terá de ser aprovado pelos petistas locais. “Tenho muita confiança no acordo, com base numa relação política muito boa com a Gleisi e com o PT de São Paulo”, diz Boulos.
Ainda está na lista de prioridades de Gleisi fazer a legenda adotar uma postura mais incisiva na defesa do governo. Um dos pontos será buscar um antídoto para conter a escalada da direita, principalmente os atos de viés golpista. O partido também fará ofensiva pela punição de crimes que teriam sido cometidos por Bolsonaro — um clamor nesse sentido veio no forte grito de “sem anistia” entoado por apoiadores de Lula durante o discurso de posse. Outro ponto é melhorar a comunicação da legenda, amplificando a mensagem de que a pauta social é prioridade da nova gestão. É preciso também preparar a reeleição de Lula, embora o presidente tenha dito que não disputará novo mandato. Muitos não acreditam nisso. “Se ele estiver bem de saúde, não tenho dúvida de que vai tentar se reeleger. E ele pediu para a Gleisi continuar na presidência para comandar esse processo de novo”, diz o deputado Jilmar Tatto, importante nome do establishment partidário.
A trajetória de Gleisi à frente do partido justifica o fato de seu comando ser hoje quase uma unanimidade. Ela assumiu o PT em junho de 2017, em um dos piores momentos da legenda — dois ex-presidentes, José Genoino e José Dirceu, já haviam sido presos. Desde 2014, o partido era revirado pela Lava-Jato. Em junho de 2016, a própria Gleisi acabou atingida pela operação, quando o apartamento funcional onde vivia com o ex-ministro Paulo Bernardo, em Brasília, tornou-se alvo de busca e apreensão em uma investigação sobre corrupção no Ministério do Planejamento, que Bernardo chefiava — ele foi preso na ocasião. Dois anos depois, acabaram absolvidos pelo STF. O ano de 2016 ainda reservaria o impeachment de Dilma Rousseff, de quem Gleisi era ministra. Para coroar o inferno astral, o próprio Lula seria preso em 2018, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Após essa sequência de golpes duríssimos, o PT ficou acuado, perdeu lideranças importantes e Gleisi acabou ganhando espaço, não apenas por falta de alternativas, mas principalmente por sua capacidade de resiliência e de obediência a Lula. Em 2018, como se sabe, com o ex-presidente encarcerado e impedido de concorrer ao Palácio do Planalto, Gleisi ajudou a levar adiante a candidatura de Fernando Haddad, que chegou ao segundo turno com 47 milhões de votos. Mesmo no fundo do poço, foi o partido que mais elegeu governadores e deputados. Gleisi também teve papel fundamental no apoio a Lula durante a prisão, quando era uma das visitas mais frequentes. A reviravolta judicial do STF, que o libertou de Curitiba e anulou os processos do ex-juiz Sergio Moro, abriu de vez o caminho para a reabilitação política do ex-presidente e de seu partido.
Na última campanha eleitoral, mais trabalho: Gleisi comandou de perto negociações que levaram a uma aliança de dez legendas no primeiro turno. Ajudou a controlar um início de revolta dentro do PT com a aproximação com o ex-tucano Geraldo Alckmin, conduziu a formação de uma federação de esquerda, a primeira do país, e fez várias incursões a territórios hostis ao petismo, em reuniões com empresários e agentes do mercado financeiro. No segundo turno, manteve o partido protagonista na campanha, mesmo com a adesão de representantes de outra dezena de siglas, incluindo MDB, PSDB e PSD.
Com toda a volta por cima que comandou, como seria de esperar, Gleisi recebe poucas críticas internas. “Eu era uma das pessoas que a achavam muito combativa, com posições muito firmes, enquanto para presidente do PT seria necessário alguém com mais diálogo. Mas ela se mostrou igualmente aberta a dialogar, promover encontros, coordenar uma eleição muito difícil e construir uma frente ampla”, afirma o senador Humberto Costa (PE). “A Gleisi pode até ser criticada, porque no PT todo mundo é, mas mostrou ser uma mulher de fibra e com capacidade de trabalho”, diz Markus Sokol, da tendência trotskista O Trabalho e membro do Diretório Nacional. As poucas críticas do momento são relativas ao poder que concentra hoje em suas mãos. “Ela atravessou o período mais turbulento e teve grande importância nisso, no sentido de manter a tropa unida. Mas é preciso mais espírito coletivo”, afirma um petista próximo a Lula.
A quase certa saída de Gleisi do comando da sigla desperta um temor no petismo: o de uma disputa interna que tenha impacto no governo. “Com o PT no Palácio do Planalto, ocupar a direção do partido virou uma posição muito estratégica”, avalia Marco Antonio Teixeira, cientista político da FGV-SP. Uma hipótese ainda pouco provável é que uma mudança no estatuto possa permitir a reeleição dela. Mesmo assim, Gleisi teria de disputar o pleito interno para se manter à frente da legenda. “Claro que tem resistência interna, mas ela tem ampla maioria, o pessoal faz fila para poder falar com ela ”, diz Tatto. Depois de carregar o fardo do PT na baixa e de trabalhar duro pela reabilitação, Gleisi leva também hoje parte do quinhão das glórias da reviravolta: tornou-se uma das mulheres mais poderosas da política no Brasil.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823