Era madrugada da quinta-feira 24 quando os primeiros mísseis atingiram cidades da Ucrânia na guerra desencadeada pelo presidente russo, Vladimir Putin. O ataque abriu caminho para a ocupação militar de uma nação independente, espalhou mortos, feridos e destruição. Imediatamente, provocou a esperada, inequívoca e ampla condenação da comunidade internacional, que teve pouca dificuldade para entender quem era o agressor, a urgência de contê-lo e a necessidade de repudiar o seu ato. No Brasil, a 10 000 quilômetros de distância do campo de batalha, os estilhaços da guerra atingiram a campanha presidencial e, embora seja cedo para avaliar o impacto, expuseram as diferenças entre os candidatos, mas principalmente as semelhanças entre Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula em Silva (PT). Ambos preferiram optar pela ambiguidade ao se posicionar diante da crise.
Embora pareça difícil, dado o rol de equívocos que já cometeu, Bolsonaro se superou. Começou fazendo tudo errado antes mesmo da eclosão do conflito. Uma semana antes de os tanques avançarem sobre a Ucrânia, o brasileiro achou que era de bom-tom visitar Putin, a pretexto de tratar de fertilizantes — um assunto importante que poderia ser discutido em momento mais apropriado. “Somos solidários à Rússia”, disse no Kremlin, sem medir o impacto que tinha a declaração naquele momento. Depois, tirou foto apertando a mão do líder russo, que ficou feliz com tanta demonstração de afeto no momento em que era cada vez mais forte a apreensão do mundo com a crescente possibilidade de uma ofensiva militar na Ucrânia. Já de volta ao Brasil, Bolsonaro achou ainda que era certo dizer que “o povo ucraniano confiou a um comediante (Volodymyr Zelensky) o destino da nação” — a declaração estampou manchetes do noticiário russo e foi interpretada como apoio ao país. Nesta semana, segundo reportagem do jornal O Globo, o presidente compartilhou em um grupo de WhatsApp uma mensagem que critica a atuação dos Estados Unidos e que exalta a Rússia. “USA não é mais uma nação virtuosa”, diz o início do texto.
Em uma demonstração inequívoca de que bolsonarismo e petismo estão bastante próximos na cegueira ideológica provocada pelo antiamericanismo e pelo apreço a regimes totalitários, a bancada do PT no Senado publicou uma nota no início da guerra condenando a política dos Estados Unidos de agressão à Rússia. O post foi apagado logo em seguida e substituído por uma nota oficial da legenda assinada pela presidente, Gleisi Hoffmann. “A resolução de conflitos de interesses na política internacional deve ser buscada sempre por meio do diálogo, e não da força, seja militar, econômica ou de qualquer outra forma”, dizia o texto, que não mencionava Putin. O ex-presidente Lula, candidato da sigla ao Palácio do Planalto, logo após o início do conflito, soltou uma nota generalista demais para a ocasião dizendo que “ninguém pode concordar com a guerra”, também sem citar a responsabilidade do líder do Kremlin. Foi como se a agressão à Ucrânia não tivesse mandante.
Os pré-candidatos de centro viram no episódio a possibilidade de marcar a diferença entre a chamada terceira via e os rivais à direita e à esquerda. Em um raro momento de unidade, Sergio Moro (Podemos), João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB) e Luiz Felipe d’Avila (Novo) assinaram um comunicado condenando claramente a Rússia e dizendo que, quando a paz, a soberania e a ordem internacional são ameaçadas, “não há espaço para a neutralidade”. Foi a primeira declaração conjunta desde abril de 2021, quando lançaram um manifesto pela democracia após declarações simpáticas de Bolsonaro ao golpe de 1964. Na escuridão que hoje contamina a política brasileira, a iniciativa foi louvável e merece aplausos.
Embora os primeiros estilhaços da guerra já tenham atingido a política brasileira, o tamanho do impacto eleitoral vai depender da duração e da brutalidade do conflito. Caso a violência contra os ucranianos torne Putin ainda mais tóxico, a imagem do aperto de mão com Bolsonaro terá um poder radiativo na campanha. “Isso pode ocorrer se o Brasil for afetado de forma mais direta pelo conflito, tendo a economia seriamente prejudicada”, diz o embaixador Rubens Barbosa. Nas campanhas presidenciais, relações exteriores sempre foram mesmo um assunto lateral, mas o PT apanhou muito em eleições recentes pela conhecida mão estendida a regimes como os de Cuba e Venezuela, assim como Bolsonaro tem sido atacado por seu apoio a ditaduras árabes. Isso garante que nenhum deles levará o tema à eleição, mas abre caminho para o centro explorar o tema. “Lula e Bolsonaro não condenam de forma clara o agressor. Haveria ganho a quem está livre dessa ambiguidade, por conseguir fazer a crítica percebida pela população como a que faz mais sentido”, avalia o cientista político Cláudio Couto, da FGV.
No caso de Lula, a lógica que guia o PT não é a da boa diplomacia, mas a da geopolítica. Em suas gestões, o tom das notas do Itamaraty variou de acordo com o grau de afinidade com líderes mundiais e o alinhamento da política externa “ativa e altiva”, que enxergava China e Rússia como parceiros importantes em uma ordem mundial na qual os Estados Unidos não teriam tanta influência — um equívoco, claro. Lula condenou de forma enfática a invasão americana no Iraque em 2003, mas Dilma não fez o mesmo em 2014 quando a Rússia anexou a Crimeia. O tom é parecido agora, eivado de antiamericanismo e complacência com Putin. “A grande parcela da culpa é dos EUA e da expansão da Otan”, disse o ex-chanceler Celso Amorim, principal nome da política externa nos anos Lula. “É uma conveniência ideológica. Lula não vê no Putin alguém de esquerda, mas, na política externa do PT, a Rússia desempenha um importante papel na organização de um mundo multipolar”, diz David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP.
Essa dubiedade frente ao dirigente que causou a maior crise bélica desde a II Guerra já provocou estragos à imagem do país na atual crise. “O Brasil, como um país importante, parece ignorar a agressão armada por uma grande potência contra um vizinho menor, uma postura inconsistente com sua ênfase histórica na paz e na diplomacia”, sintetizou um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA após Bolsonaro manifestar “solidariedade” à Rússia. A postura vilipendia a tradição da diplomacia brasileira, ilustrada historicamente por Oswaldo Aranha, que, como presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas entre 1947 e 1948, teve papel fundamental na criação de Israel. “Hoje, o Brasil é um ator marginal no concerto das nações, não é levado a sério pelo que suas autoridades maiores dizem no foro internacional”, diz Luiz Augusto de Castro Neves, ex-embaixador no Japão e na China. O Itamaraty, ressalte-se, faz o que pode para reduzir o estrago. Na ONU, o Brasil votou por condenar a invasão e pedir a retirada das tropas. “O que está ocorrendo aqui não seria possível em nenhum país da estatura do Brasil”, avalia o embaixador Rubens Ricupero, citando a “rebeldia” dos diplomatas, que aparentemente ignoram o que pensa e diz o presidente. É certo que o país tem uma longa lista de prioridades a discutir na eleição presidencial, mas a guerra na Ucrânia expôs como os dois atuais líderes da corrida ao Palácio do Planalto comungam de uma visão pequena do papel do Brasil no mundo. Daqui para a frente, ao que tudo indica, não haverá como fugir a esse debate.
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779