Efeitos do 7 de Setembro mudam foco da manifestação de oposição
Agora o objetivo do protesto previsto para este domingo é tentar ampliar o palanque a fim de aumentar a pressão pelo impeachment
Ao levar às ruas uma escalada insana contra o STF no Dia da Independência, Jair Bolsonaro produziu um efeito colateral que pode gerar obstáculos consideráveis às suas pretensões políticas. Além da condenação em uníssono pelas instituições da República, o esforço para mobilizar a tropa mais radical de apoiadores em um momento de total desgoverno diante dos problemas graves e reais do país acendeu o pavio de um movimento de união da babel oposicionista. Esse fenômeno vem tomando forma em torno da manifestação marcada para o próximo domingo, 12. Convocado desde agosto pelo MBL e pelo Vem Pra Rua, movimentos que se notabilizaram nos protestos contra Dilma Rousseff, o ato tinha a proposta inicial de insuflar as pessoas em volta da chamada terceira via — ou seja, era destinado àqueles que rejeitam os extremos ideológicos representados pelos atuais favoritos nas pesquisas à corrida do Palácio do Planalto em 2022, Lula e Bolsonaro. O destempero presidencial no feriado do dia 7, no entanto, mudou o foco: agora, o objetivo é se descolar do debate eleitoral e reunir o maior número possível de pessoas, da direita à esquerda, para reagir a Bolsonaro sob o mote da defesa da democracia e do impeachment. As conversas sobre a mudança de perfil do ato e da ampliação do palanque começaram a ocorrer enquanto Bolsonaro ainda vociferava contra o Supremo e as urnas eletrônicas na Avenida Paulista. “Queremos contar com o maior espectro ideológico possível”, afirma o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), do MBL.
Essa movimentação inicial já produziu o feito de reaproximar em torno da causa alguns nomes importantes do chamado centro democrático, algo que parecia difícil de acontecer até alguns dias atrás. A primeira tentativa de construir uma alternativa presidencial suprapartidária de terceira via foi esboçada em abril. Logo após Bolsonaro ter saudado o golpe militar de 31 de março, seis presidenciáveis à época assinaram um manifesto: Ciro Gomes (PDT), Luiz Henrique Mandetta (DEM), João Amoêdo (NOVO), os tucanos Eduardo Leite e João Doria e Luciano Huck, além da participação nos bastidores do ex-juiz Sergio Moro. O autodenominado “Polo Democrático” não foi além, no entanto, de um grupo de WhatsApp. Agora, a maior parte dessas lideranças, com a exceção de Moro e de Huck (sendo que o apresentador já descartou as pretensões políticas ao renovar seu contrato com a Rede Globo), está envolvida de alguma forma no protesto de domingo. “O 7 de setembro deu uma tração grande ao impeachment, porque mostrou o total desequilíbrio golpista do presidente. As divisões iniciais foram superadas”, acredita Roberto Freire, presidente do Cidadania e um dos maiores entusiastas do ato previsto para ocorrer na mesma Avenida Paulista lotada por bolsonaristas no feriado da Independência.
A despeito do avanço, ainda restam dúvidas sobre quem estará efetivamente no palanque. Embora apoie o ato, o governador paulista João Doria não confirmou participação. Ele acompanhará o protesto do Centro de Operações da PM, onde foi montado um esquema especial de segurança. “Sou a favor da manifestação entendendo que ela é democrática porque é em defesa da liberdade, da Constituição e de uma perspectiva melhor para o futuro do Brasil”, diz. Ciro é uma presença esperada, assim como Mandetta. O ex-ministro da Saúde diz que a manifestação não tem o intuito de viabilizar uma terceira via eleitoral. “Mas, de certo modo, ela acaba sendo importante para demonstrar unidade e dar uma alternativa a mais de 50% da população que rejeita Bolsonaro”, diz Mandetta. Também deve estar por lá a senadora Simone Tebet (MDB-MS), que tenta se viabilizar como presidenciável do MDB. A organização prevê contar também com o comparecimento dos senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ambos membros da CPI da Pandemia, e de Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara. “Na medida em que cresceu a escalada de Bolsonaro de ataques às instituições, fica claro que a questão partidária e eleitoral é secundária”, afirma o ex-presidenciável João Amoêdo (Novo), que apoia o movimento desde o início.
A costura para trazer ao mesmo palanque parte da esquerda é bem mais complexa, embora algumas adesões já tenham sido registradas. Nesse campo, um dos primeiros a demonstrar apoio foi o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), ex-ministro de Lula e Dilma. “O que demarca os campos políticos neste momento não é esquerda e direita, é quem defende a democracia ou pretende romper com ela. Independentemente de posições políticas no passado recente”, diz. A deputada paulista Isa Penna (PSOL) foi outra que se juntou ao grupo. Para a porta-voz do Vem Pra Rua, Luciana Alberto, porém, quem vai aderir “não é a esquerda do PT, que está fechada com Lula”. “Nossa esperança é ter conosco uma centro-esquerda democrática”, afirma.
De fato, o ponto mais crítico desde o começo era o tratamento que seria dado a Lula. Mesmo com a promessa da mudança da pauta do ato, os petistas devem manter distância desse palanque. Na quinta 9, o partido emitiu nota dizendo que apoia o esforço pró-impeachment, mas que vai fazer sua própria manifestação nas ruas no futuro. “O que eu defendo é construir um ato conjunto para depois do dia 12, com PSDB, MDB, Ciro, Doria. Só engrossar e chancelar o do MBL, não”, diz o vice-líder da minoria na Câmara, deputado Alencar Santana Braga (PT-SP). Na mesma toada, Raimundo Bonfim, coordenador da Central de Movimentos Populares, que integra a Frente Brasil Popular ao lado da CUT e de outras organizações próximas ao PT, não vê possibilidade de adesão ao protesto do dia 12. Mas admite que muitas figuras da esquerda podem comparecer “em nome próprio”, até com vistas a viabilizar, no futuro, um novo ato unificado contra o bolsonarismo, que não tenha o vício de origem de ser convocado com críticas a Lula.
Apesar das dificuldades com o principal partido de esquerda, a ambição dos organizadores do ato do dia 12 é formar contra Bolsonaro um palanque tão diverso quanto o das Diretas Já, movimento que reuniu líderes políticos de grande relevância na redemocratização do país, mas que tinham algumas profundas diferenças entre si, como FHC, Lula, Tancredo Neves, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e Franco Montoro, com o objetivo de contestar a ditadura e pedir eleições. A imagem que ficou para a posteridade foi a do gigantesco comício realizado na Praça da Sé, em São Paulo, em janeiro de 1984, que reuniu cerca de 200 000 pessoas. O contexto histórico, no entanto, era outro. Além de haver uma ocupação ilegítima da Presidência da República, não estavam em jogo objetivos eleitorais imediatos, como os de agora, e o espectro ideológico não era tão multifacetado. O desafio de hoje é saber se a simples bandeira “Fora Bolsonaro” será suficiente para manter acesa a chama do grupo que se tenta criar ou se as divergências e os interesses mais particulares implodirão a evolução de uma frente ampla.
Outro ponto que ainda provoca debates é sobre a conveniência de tentar rivalizar nas ruas com os bolsonaristas. O receio é de que essas manifestações só sirvam para fortalecer o clima de embate que o capitão adora produzir. “O que ele deseja é essa agitação permanente e confrontos”, pondera o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB). A política de enfrentamento com a escolha de adversários reais e fictícios é parte fundamental da política do presidente para mobilizar as redes sociais, manter o apoio dos seguidores radicais e, como se viu, levar multidões às ruas para defender bandeiras antidemocráticas. O ato do dia 12 será um grande teste para saber se o esforço de união e a mobilização para combater a minoritária (mas barulhenta) força popular bolsonarista são as estratégias mais acertadas para a oposição neste momento.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755