Em 2017, um ano antes das eleições presidenciais, a Lava-Jato atingia o seu ponto mais alto. Naquele momento, o Supremo Tribunal Federal autorizou a investigação de 98 políticos, sendo oito ministros, três governadores, 24 senadores e 39 deputados federais. Em busca de provas, a Polícia Federal vasculhou a casa de figurões, como os senadores Renan Calheiros (MDB-AL), ex-presidente do Congresso, Humberto Costa (PT-PE), ex-ministro da Saúde, e Aécio Neves (PSDB-MG), ex-candidato à Presidência. No rastro de uma delação premiada, o presidente da República, Michel Temer, e mais outra centena de autoridades passaram a ser investigados por corrupção. E no ato mais extraordinário o ex-presidente Lula foi condenado à prisão. A Justiça trilhou um caminho nunca antes percorrido e avançava sobre ele de maneira frenética — às vezes, com algum exagero, diga-se. Empresários de vários matizes estavam na cadeia, partidos políticos de diferentes cores sucumbiram diante das evidências, biografias, algumas notórias e outras nem tanto, foram fulminadas. A tradição secular de impunidade dos poderosos parecia finalmente rompida.
Não por acaso, protagonistas da Lava-Jato, Sergio Moro, o juiz responsável pelos processos do caso, e Deltan Dallagnol, o procurador que comandava a força-tarefa de Curitiba, onde as investigações começaram, ganharam ao longo desse trabalho status de celebridades nacionais. No auge, Moro chegou a ser apontado por uma respeitada publicação americana como uma das 100 personalidades mais influentes do mundo. Em Brasília, Rodrigo Janot, o então procurador-geral da República, a quem cabia investigar e denunciar as autoridades detentoras de foro especial, era celebrado e adulado pelos quatro cantos do país. A Lava-Jato havia se transformado em referência no combate à corrupção e seu modelo passou a ser replicado em vários estados. Não é exagero dizer que praticamente todos os eventos políticos a partir de 2017 foram influenciados de alguma forma pelos desdobramentos da operação — notadamente o mais importante deles: a eleição de Jair Bolsonaro.
Hoje, quatro anos depois e de novo a um ano da corrida presidencial, as estrelas da Lava-Jato prometem voltar ao centro do debate político — só que agora longe dos tribunais e em cima de um palanque. Sergio Moro pretende disputar a Presidência da República. Deltan Dallagnol anunciou que está deixando o Ministério Público e deve se candidatar a uma vaga de deputado federal pelo Paraná. Rodrigo Janot, que escreveu um livro dizendo que pensou em atirar contra o ministro Gilmar Mendes, estuda a possibilidade de concorrer a uma cadeira no Parlamento por Minas Gerais ou Brasília.
O ato mais marcante dessa nova fase aconteceu na quarta-feira 10, quando Moro se filiou ao Podemos. A solenidade marcou a conversão definitiva do ex-juiz e ressuscitou a discussão sobre os limites dessa interseção entre política e Justiça — dois núcleos que, para o bom funcionamento das instituições e da própria democracia, precisam manter uma distância regulamentar entre si.
Na Lava-Jato, essa distância, em alguns momentos, não foi respeitada. Moro abandonou a magistratura em 2018, depois de aceitar o convite do presidente eleito Jair Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça. Na época, a defesa de alguns condenados chegou a afirmar que o convite era uma espécie de compensação pelo fato de ele ter condenado Lula e, por consequência, afastado da disputa aquele que seria o principal adversário do ex-capitão. Era também, segundo essa mesma narrativa, uma evidência de que o magistrado conduzia os processos guiado por motivações políticas. Alguns episódios ajudaram a alimentar essa suspeita. Faltando apenas seis dias para o primeiro turno das eleições, o então juiz levantou o sigilo da delação premiada feita pelo ex-ministro Antonio Palocci, um calhamaço de acusações pesadas contra os petistas. Mais tarde, descobriu-se, a partir da revelação de mensagens trocadas entre o juiz e os procuradores, que eles combinavam diligências e estratégias de atuação, o que é flagrantemente ilegal.
O fato, devem admitir inclusive seus apoiadores, é que o candidato Moro só existe graças ao trabalho do juiz Moro. Será então que desde o começo ele estava premeditando esse desdobramento? “Num primeiro momento, a Lava-Jato não agiu com objetivo de ocupar o espaço político, mas a grandeza da operação e os rumos da investigação acabaram afetando diretamente a eleição de 2018 e, talvez, influenciando algumas decisões judiciais”, afirma o cientista político Valdir Pucci. Na solenidade de filiação do ex-juiz ao Podemos, Moro, num claro discurso de presidenciável, disse que o país precisa combater as altas taxas de desemprego e de inflação, prometeu erradicar a pobreza e defendeu a necessidade de enfrentar o compadrio e os privilégios da classe política. Orientado a focar a plataforma de campanha em temas econômicos, considerados a principal preocupação do eleitor no próximo ano, defendeu a reforma tributária, o respeito ao teto de gastos públicos e o livre mercado. “O país está indo para o rumo errado”, resumiu. Sobre sua transição para a política, algo que ele um dia chegou a dizer que jamais faria, afirmou que, após a fracassada experiência no governo Bolsonaro, não podia ficar “quieto” e sem “tentar ajudar o país”. “Resolvi fazer do jeito que me restava: entrando para a política, corrigindo isso de dentro para fora.”
Na Operação Mãos Limpas, que revolucionou os mecanismos de combate à corrupção na Itália e inspirou muitas das ações da Lava-Jato, três de seus principais integrantes também se arvoraram em disputas eleitorais. Ao trocar a carreira pública pelas urnas, o juiz Antonio Di Pietro, o mais célebre dos investigadores, contabilizava cerca de 200 processos contra si. Guardadas as devidas proporções, foi essa a mesma justificativa usada por Dallagnol, ao anunciar que abandonaria uma carreira de dezoito anos no Ministério Público Federal para entrar na política. Ele confidenciou a interlocutores que a decisão de submeter a Lava-Jato ao crivo das urnas não é simplesmente um desejo pessoal, mas uma questão de sobrevivência. Na visão de Dallagnol, o Conselho Nacional do Ministério Público, órgão que fiscaliza a atuação dos procuradores, está na iminência de expulsá-lo da profissão. Assim como aconteceu na Itália, segundo o ex-chefe da força-tarefa, os políticos atingidos pelas investigações se reorganizaram e partiram para uma retaliação.
Em sete anos de existência, a Lava-Jato instaurou cerca de 300 ações penais, condenou 360 pessoas e recuperou mais de 4 bilhões de reais desviados pelos criminosos. Sem dúvida, um feito num país tão acostumado a tolerar crimes de colarinho branco. A questão é que, pelo menos em algumas oportunidades, as motivações pareciam perseguir um outro objetivo: os holofotes. Dallagnol, por exemplo, foi muito criticado pela apresentação de um PowerPoint em que colocava Lula no topo da organização criminosa que desviou bilhões da Petrobras — não pela conclusão em si, sustentada em fatos e testemunhos, mas pelo nível de espetacularização. “Quando membros do Judiciário ou do Ministério Público constroem sua reputação em torno de julgamentos de casos com grande relevância política, a imagem que se passa é a de que toda atuação tinha um propósito político”, diz o especialista em direito eleitoral Luiz Eduardo Peccinin. “As candidaturas de Moro e Deltan apenas reforçam essa percepção”, completa.
O fato é que esse propósito político de alguns representantes da Lava-Jato, muitas vezes, se mostrou real. No Rio de Janeiro, o juiz Marcelo Bretas, responsável pelo braço fluminense da operação, está sendo investigado por tentar interferir nas eleições. Em um processo de colaboração já aceito pela PGR, um delator contou que, em 2018, Bretas atuou pessoalmente para que Wilson Witzel, um colega de toga, fosse eleito governador do estado. Nas vésperas da eleição, o juiz vazou um depoimento que implicava Eduardo Paes, adversário de Witzel e líder nas pesquisas, num caso de fraude em licitação e recebimento de propina. Depois da manobra, as intenções de voto em Witzel dispararam. Bretas, evidentemente, nega que uma coisa tenha a ver com a outra. Difícil é negar que ele próprio não tenha flertado com a hipótese de ingressar na política. Durante algum tempo, o juiz fez diversos acenos à família Bolsonaro e participou de eventos ao lado do presidente da República. Por causa disso, acabou sendo advertido em um processo disciplinar.
Na tentativa de limitar o acesso de algumas dessas figuras ao universo eleitoral, o Congresso chegou a discutir uma quarentena de quatro anos para juízes e membros do Ministério Público, que foi aprovada na Câmara. Com a confusão de outras votações, o projeto perdeu força e hoje está esquecido no Senado. Quando surgiu, o texto parecia justamente uma manobra para evitar a candidatura de Sergio Moro, algo casuístico e um tanto fora de propósito. A discussão teórica, porém, é válida. Por que permitir que magistrados ou procuradores façam uso do seu cargo para ganhar notoriedade em vistas de uma eleição? Ou para prejudicar adversários de tendências políticas diferentes das suas? Isso acaba sendo uma subversão completa do papel da Justiça. Como não há regras estabelecidas hoje, é possível que até março do ano que vem, quando se encerra o prazo de filiação para quem pretende disputar as eleições, outros magistrados e procuradores decidam migrar para a política. No aspecto legal, não há nada de errado nisso — desde que suas decisões e investigações, claro, não sejam usadas como um trampolim com fins eleitorais.
A JUSTIÇA COMO TRAMPOLIM
Não são raros os casos de juízes, procuradores e delegados de polícia que usam a notoriedade profissional como passaporte para a política
Joaquim Barbosa
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou notoriedade em 2012 como relator do processo do mensalão, que levou à cadeia os principais líderes do PT. Aposentado, filiou-se ao PSB e, desde então, seu nome sempre aparece como presidenciável
Wilson Witzel
O juiz federal abandonou dezessete anos de magistratura para disputar o governo do Rio. Com fama de linha-dura e proximidade com o clã Bolsonaro, foi eleito contra todos os prognósticos da época e depois cassado em um processo de impeachment por desvios públicos
Selma Arruda
A juíza dedicou boa parte de sua carreira à luta contra o crime organizado em Mato Grosso. Aposentada, decidiu entrar para a política, candidatou-se ao Senado, ficou conhecida como o “Moro de saias”, foi eleita e teve o mandato cassado em 2019
Pedro Taques
O ex-procurador da República foi um dos expoentes da Operação Arca de Noé, que levou à condenação de figurões do crime organizado em Mato Grosso. No rastro da popularidade alcançada, foi eleito senador e depois governador do estado
Protógenes Queiroz
O delegado da PF conduziu a Operação Satiagraha, que apurava supostos negócios escusos entre políticos e um banqueiro. A investigação foi um desastre, acabou anulada pela Justiça, mas a visibilidade rendeu ao policial uma vaga de deputado federal
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764