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Eleição confronta legados de Lula e Bolsonaro; veja pontos fortes e fracos

Entender os sucessos e fragilidades dos dois governos pode ajudar o eleitor a decidir quem merece um novo mandato em um duelo imprevisível

Por Daniel Pereira Atualizado em 4 jun 2024, 11h29 - Publicado em 28 out 2022, 06h00

Desde a redemocratização, nenhuma sucessão presidencial deixou o país tão em suspense, rachado e apreensivo em relação ao que ocorrerá no dia seguinte à votação quanto a eleição de 2022. Na reta final de uma campanha acirrada, marcada por alto nível de rejeição aos dois candidatos, muitos ataques pessoais e pouco debate de ideias, episódios de violência e uma enxurrada de fake news (desta vez, de lado a lado), há dúvida sobre quem ganhará o segundo turno, algo que só ocorreu, mesmo assim em menor escala, em 2014, quando Dilma Rousseff venceu Aécio Neves por 3,5 milhões de votos. Há ainda outra dúvida — esta inédita: se Lula derrotar Bolsonaro, o presidente aceitará ou, como tem insinuado, contestará o resultado, dizendo-se vítima de fraude nas urnas eletrônicas e até nas inserções da propaganda eleitoral no rádio. A disputa eleitoral, que se encerra oficialmente no próximo domingo, pode se estender por dias, semanas e até adentrar 2023. Será mais um teste de estresse para a democracia brasileira, que se tornou ela própria um dos principais temas de debate numa campanha travada, infelizmente, em clima de hostilidade.

Confira a apuração do resultado do segundo turno das eleições 2022

Em meio a tantas dúvidas, é certo que o desfecho da votação terá a marca do ineditismo. Se ganhar, Lula será o primeiro brasileiro a conquistar nas urnas três vezes a Presidência da República — e Bolsonaro, o primeiro mandatário a fracassar na tentativa de reeleição. Já o capitão, em caso de vitória, será protagonista da primeira virada, entre o primeiro e o segundo turnos, numa corrida presidencial. Em 2 de outubro, ele recebeu 6,2 milhões de votos a menos do que o antecessor. Apesar dessa desvantagem, nem os integrantes da campanha do PT dão a fatura como liquidada, tanto que intensificaram a campanha nos maiores colégios eleitorais do país e a ofensiva para evitar a abstenção entre os mais pobres, segmento em que Lula prevalece sobre o rival. Há consenso de que o páreo está equilibrado, indefinido e imprevisível. É por isso que cada candidato passou a dizer que ele, e não o adversário, está mais perto da vitória, compartilhando uma velha estratégia destinada a conquistar o pequeno, mas decisivo, contingente de eleitores indecisos. Às vésperas da votação, os postulantes rivalizam até para ver quem canta vitória mais alto, o que não seria necessário se, em três meses de campanha oficial, tivessem apresentado propostas consistentes para os problemas do país.

AMPLIAÇÃO - Auxílio Brasil: aumento do valor e do número de beneficiados -
AMPLIAÇÃO - Auxílio Brasil: aumento do valor e do número de beneficiados – (Rivaldo Gomes/Folhapress/.)

A sorte do eleitor é que ele depara com um fato único nesta campanha. Pela primeira vez, a disputa se dá entre dois candidatos que passaram pela Presidência, o que permite a comparação de legados. VEJA ouviu uma dezena de especialistas de diferentes áreas sobre os feitos dos governos de Lula e Bolsonaro. Eles apontaram pontos positivos e negativos de cada um deles (veja os quadros), mas deixaram claro que, mais relevante do que as realizações ou falhas do passado, são os desafios monumentais à frente do país. Na economia, Bolsonaro tem uma agenda considerada mais sensata, a agenda liberal, que ele nunca defendeu em seus quase trinta anos como deputado federal de baixo clero. Em seu mandato, o capitão conseguiu aprovar a reforma da Previdência, a capitalização da Eletrobras e marcos regulatórios capazes de impulsionar investimentos privados. Tudo, obviamente, positivo. Mas o projeto de reeleição conteve esse ímpeto, e o presidente mandou engavetar a reforma administrativa e flexibilizou o teto de gastos para promover uma gastança em busca de votos. Ele promete que num segundo mandato a agenda liberal do ministro Paulo Guedes, e não a cartilha perdulária do Centrão, voltará a prevalecer.

arte fortes e fracos

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Honrando a Carta ao Povo Brasileiro lançada em 2002, Lula também teve uma política econômica elogiada: combateu a inflação, respeitou contratos, manteve o câmbio flutuante e promoveu crescimento com inclusão social. As dúvidas sobre ele estão relacionadas mais a fatores posteriores à sua saída da Presidência. Sua sucessora Dilma Rousseff exagerou no intervencionismo estatal e legou ao país à maior recessão de sua história. Já o ex-presidente se recusa a detalhar a sua proposta econômica na atual campanha. Pior: nas poucas vezes em que se manifestou, defendeu a revogação do teto de gastos e a revisão da reforma trabalhista e rechaçou as privatizações. Esse receituário é criticado por Henrique Meirelles, ex-­presidente do Banco Central no governo Lula, que declarou recentemente apoio ao petista. Segundo Meirelles, o teto de gastos pode até ser driblado de forma excepcional em 2023, apenas para garantir o pagamento dos auxílios aos mais pobres, mas deve ser retomado o mais rápido possível, como forma de restabelecer a confiança na responsabilidade fiscal do país e, assim, abrir espaço para a queda do dólar, da inflação e da taxa de juros.

VITRINE - Bolsa Família: o programa social favoreceu milhões de famílias -
VITRINE - Bolsa Família: o programa social favoreceu milhões de famílias – (Alexandro Auler/JC Imagem/.)

Ministro da Fazenda no governo de Michel Temer, Meirelles acredita que a melhor alternativa para conseguir uma folga de caixa para bancar programas sociais é aprovar a reforma administrativa, até aqui evitada tanto por Lula quanto por Bolsonaro. “A prioridade é sair desse nó fiscal em que o Brasil se encontra”, declara. Apesar das cobranças por mais detalhes de seus planos, Lula recebeu o apoio de alguns dos mais renomados economistas do país, muitos deles liberais, como alguns dos idealizadores do Plano Real, que foi combatido pelo PT ao ser lançado. De uma forma geral, esses apoios foram justificados com a alegação de que o ex-­presidente tem compromisso com a democracia, enquanto Bolsonaro comanda um projeto autoritário. Desde que assumiu a Presidência, o capitão intimida integrantes de outros poderes, ameaça enquadrar o Supremo Tribunal Federal, coloca sob suspeita a lisura do processo eleitoral e se recusa a dizer que aceitará o resultado da votação caso seja derrotado. Bolsonaro também adotou a estratégia de inflamar seus apoiadores mais radicais, o que contribuiu para que episódios de violência ocorressem nesta campanha. Aliado do presidente, o ex-deputado Roberto Jefferson disparou tiros de fuzil e lançou granadas contra agentes da Polícia Federal que foram até a sua casa para cumprir uma ordem de prisão.

Neutro na corrida presidencial, o ex-presidente Michel Temer afirma que a atual situação de tensão decorre da postura de políticos de colocar certos grupos de eleitores contra outros grupos de eleitores, como se participassem de um duelo, e não de um debate de ideias. Lula já falou em extinguir o antigo DEM, e Bolsonaro em fuzilar a petralhada. A grande preocupação de Temer é com o estado atual de tensão entre poderes e instituições. “Quando há uma certa violência verbal e até violência física durante as eleições, brasileiro contra brasileiro, é uma violação do princípio constitucional que determina a paz”, diz o ex-presidente. “Toda agressão aos poderes e às instituições viola o princípio democrático.” Ao apostar num faroeste institucional, Bolsonaro desperdiçou energia que poderia — e deveria — ser empregada em áreas consideradas essenciais pela população. Negacionista, ele atrasou a compra de vacinas contra a Covid-19, desprezou o conhecimento científico e teve quatro ministros da Saúde, o que por si só é um fator que dificulta a boa gestão. A campanha de imunização contra a poliomielite, por exemplo, não atingiu a meta. Em razão da pandemia, há filas para consultas e uma série de procedimentos.

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AMEAÇA - Cerco ao STF: incentivo permanente a manifestações antidemocráticas -
AMEAÇA - Cerco ao STF: incentivo permanente a manifestações antidemocráticas – (Karime Xavier/Folhapress/.)

Para a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz, o próximo presidente terá de melhorar a fiscalização dos recursos repassados aos municípios. “É um ponto negativo que não vem de agora e já atingiu vários governos. É necessário criar mecanismos de controle mais rígidos, para que esse dinheiro seja efetivamente gasto com saúde”, declara ela. “Tem de ter formas de controle do dinheiro público. E isso serve para toda a cadeia da saúde, desde a compra de insumos até a contratação de obras”, reforça o médico infectologista David Uip, ex-secretário de Saúde de São Paulo. Enquanto travou guerras ideológicas, o governo Bolsonaro também apresentou avaliações negativas em outras áreas. Na diplomacia, chegou a se orgulhar de transformar o Brasil num “pária internacional”, conforme definição do ex-chanceler Ernesto Araújo. No Meio Ambiente, esvaziou órgãos de fiscalização, fez corpo mole para a cobrança de multas aplicadas a infratores e ainda contestou o aumento do desmatamento na Amazônia, baseado em dados coletados por órgãos oficiais. Na Educação, outra pasta que teve quatro ministros, os feitos mais conhecidos são a redução de investimentos e suspeita de liberação de recursos em troca de comissões a pastores próximos ao ex-ministro Milton Ribeiro.

arte forte e fraco

Como faz desde o início de seu mandato, Bolsonaro nega que haja corrupção em seu governo, ao contrário do que ocorreu nas gestões petistas, nas quais funcionaram os dois maiores escândalos de corrupção desvendados e punidos da história do país, o mensalão e o petrolão. Na campanha, Lula se negou mais uma vez a fazer um mea-culpa e a prestar esclarecimentos satisfatórios sobre os desvios bilionários nas estatais e a compra de apoio parlamentar com dinheiro público durante seu governo. Resultado: o tema ainda causa enorme desgaste à sua pretensão de voltar ao poder. Se vencer a disputa, o petista terá minoria no Congresso e, por isso, especula-se sobre como negociará apoio para aprovar projetos. Bolsonaro apostou nas controversas emendas de relator, que são alvo de críticas por falta de transparência e de critérios republicanos para a liberação dos recursos, que priorizaram deputados e senadores aliados do capitão (veja matéria na pág. 38). “É preciso extinguir o orçamento secreto. É inadmissível que esse mecanismo de captura do orçamento público por interesses privados continue a existir”, afirma Juliana Sakai, diretora-executiva da Transparência Brasil.

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CRIMES - Mensalão: desvios, suborno e condenações à prisão de vários petistas -
CRIMES - Mensalão: desvios, suborno e condenações à prisão de vários petistas – (./AFP)

Segundo integrantes das duas campanhas, líderes de partido e cientistas políticos, os eleitores mais pobres terão peso decisivo no segundo turno. Hoje, mais de 30 milhões de pessoas passam fome no país. Chaga secular, a desigualdade — econômica, de acesso à educação de qualidade e de oportunidades — continua em níveis alarmantes. Bolsonaro tentou atenuar o sofrimento dos mais necessitados por meio do auxílio emergencial e da ampliação do Auxílio Brasil. Lula implantou o Bolsa Família, reconhecido internacionalmente. Por questões meramente políticas, um mudou o nome e até regras do programa do outro, retirando, por exemplo, a exigência do beneficiário de manter em dia a carteira de vacinação dos filhos. “No Brasil, o mais grave é como é naturalizada a questão da desigualdade”, afirma Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas (Cufa). “Num país desigual, é um tremendo desafio apresentar uma política social sustentável que quando o presidente sair da Presidência a política social não saia junto, e sim vire uma política de Estado”, complementa.

Esse tipo de maturidade e de compromisso público não é muito comum entre os políticos brasileiros, mas toda eleição encerra uma esperança de mudança. Para que o Brasil avance, é fundamental distensionar o ambiente, pacificar as relações e retomar o diálogo. Reconhecer o resultado e os recados da urna é um passo crucial nessa direção.

Colaboraram Marcela Mattos e Ricardo Chapola

Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813

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