Ele manda menos
Agora tutelado pelo vice-presidente na crise da Venezuela, o chanceler Araújo, dado a arroubos doutrinários, está menor no cargo de chefe da diplomacia
Calejado pelos trinta anos de obediência à hierarquia no Itamaraty, Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, ouviu, quieto, o discurso em espanhol do vice-presidente, general Hamilton Mourão, no encontro do Grupo de Lima em Bogotá, na segunda-feira 25. O tema da reunião era a situação crítica da Venezuela, e Mourão rechaçou qualquer “agressão” e “medida extrema” contra o país vizinho. Na saída da reunião, quando o vice-presidente, entrevistado pela GloboNews, convidou gentilmente o chanceler a expor sua opinião, Araújo escorregou em sua fascinação pelo atual presidente dos Estados Unidos. O repórter perguntou sobre a aparente contradição de Donald Trump, que aceita negociar com Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte, mas não com Nicolás Maduro, da Venezuela. Araújo, com alguma hesitação, disse que são situações geopolíticas muito diferentes — e sugeriu que na Coreia do Norte não se verificava o “grau de brutalidade” do agonizante governo chavista. É uma enormidade: regime mais fechado do mundo, a Coreia do Norte mantém campos de concentração, e estima-se que 40% da população seja subnutrida.
Outro ministro poderia ter dito, diplomaticamente, que não lhe cabia responder pela política externa dos Estados Unidos. Mas Araújo, com sua concepção muito particular da história contemporânea, jamais deixaria o atual governo americano sem defesa. Afinal, é ele o diplomata que, em um artigo acadêmico publicado em 2017, dizia que Donald Trump poderia representar nada menos que a salvação da civilização ocidental, que se perdera em um materialismo niilista. Muito ao modo de Trump, o chanceler tentou minimizar a besteira que disse sobre a Coreia do Norte atacando — pelo Twitter, claro — o inimigo de sempre: a imprensa. Afirmou que a “mídia internacional” e a imprensa brasileira só passaram a chamar o norte-coreano Kim Jong-un de ditador depois que ele começou a negociar com Trump. Uma visita rápida aos arquivos on-line de jornais e revistas, do Brasil e do mundo, atesta que isso não é verdade.
Com seu discurso ao mesmo tempo incisivo e moderado, Mourão fez o papel de supervisor adulto do chanceler, personalidade nitidamente mais extremada. No Itamaraty, o vice-presidente passou a ser visto como o “poder moderador” das atitudes do chanceler. “O que se vê é que, na primeira crise grave na área externa, o chanceler passou a ser tutelado pelo vice-presidente”, observou o embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero. Não é a primeira vez que o núcleo militar contém Araújo: veio do chanceler a ideia, aventada publicamente por Bolsonaro em janeiro, de instalar uma base militar americana no Brasil. Coube ao general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, desmentir o projeto.
Gaúcho de 51 anos, Ernesto Araújo, tal como Vélez Rodríguez, titular da pasta da Educação, tornou-se ministro graças à bênção do proselitista conservador Olavo de Carvalho. É o mais jovem chanceler vindo da carreira diplomática na história do Itamaraty. Nunca assumiu a chefia de uma embaixada, mas desempenhou, entre 2010 e 2015, a função de ministro-conselheiro — o número 2 — da representação do Brasil em Washington. Foi nesse período que outro diplomata conservador, Nestor Forster Júnior, o apresentou a Olavo de Carvalho, que vive no Estado americano da Virgínia. Graças ao contato com Olavo — e também com seu discípulo Filipe Martins, hoje assessor internacional da Presidência da República —, Araújo chegou ao ministério. Outros onze nomes foram cogitados, mas o autor do blog Metapolítica 17 — Contra o Globalismo levou o Itamaraty.
No blog e em “Trump e o Ocidente” — o artigo em que exalta o presidente americano como salvador da civilização —, transparece uma visão cruzadista que se coaduna bem com as extravagâncias ideológicas de Bolsonaro. Com a diferença de que Araújo tem mais estofo cultural para sustentar suas ideias: é capaz de citar Os Persas, tragédia de Ésquilo, para argumentar que o nacionalismo é uma pedra fundamental da civilização ocidental. Trump, diz Araújo no ensaio de 2017, compreende o valor do nacionalismo, e por isso as elites cosmopolitas o têm como fascista: “Sim, vivemos em um mundo onde falar dos heróis, dos ancestrais, da alma e da nação, da família e de Deus é, para grande parte da ideologia dominante, uma indicação de comportamento fascista”, lamenta Araújo.
Esse pensamento causou impressão dentro e fora do Itamaraty. Muitos que tiveram contato com Araújo antes de sua nomeação como chanceler estranham o extremismo de seus arroubos doutrinários. “Eu o conheci em Washington. Era um ‘itamarateca’ padrão”, lembra Welber Barral, consultor e ex-secretário do Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento. “Esse discurso mais à direita, mais ideológico, é coisa recente.” Um ex-chanceler recorda-se de Araújo como um homem tímido. Antes de embarcar nas passeatas pela eleição de Bolsonaro em Brasília, Ernesto Araújo era tido no Itamaraty como um diplomata cioso de seu trabalho e sem pretensões políticas. A ele se atrelavam — e ainda se atrelam — adjetivos positivos: competente, dedicado, discreto, estudioso, ponderado, correto, impecável. “É uma pessoa muito querida no Itamaraty. Um cara do bem”, afirma um ex-colega da turma de 1990 do Instituto Rio Branco.
O “cara do bem” entrou no Itamaraty com o propósito de purgar a casa de Rio Branco da herança de “marxismo cultural” e “globalismo” deixada pelos governos petistas. Despertou, entre os diplomatas, temores de expurgos, e de fato afastou profissionais experientes que ousaram esboçar discordâncias (Forster, que o apresentou a Olavo de Carvalho, foi cogitado para chefe de gabinete, mas logo descartado por discordar do modo como Araújo tratava alguns veteranos da instituição). Nos corredores do Itamaraty, o chanceler é chamado de “Arnesto”, como no samba de Adoniran Barbosa, ou de “Beato Salu”, personagem místico da novela Roque Santeiro, de Dias Gomes. Seu discurso de posse fez jus ao apelido esotérico. Entre citações do Evangelho e de Raul Seixas, Araújo recorreu ao exemplo de dom Sebastião, o jovem rei português que morreu na batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos, em 1578. “Dom Sebastião se tornou um mito, aquele que há de voltar das ondas do mar, num dia de muita névoa”, observou Araújo, para em seguida lembrar que Bolsonaro costuma ser chamado de “mito”. O messianismo dessa fórmula não é alentador, e é quase tudo o que existe para avaliar a linha que o ministro pretende seguir. “O único documento oficial que temos até agora sobre política externa é o discurso de posse do chanceler”, disse o veterano embaixador Sergio de Abreu e Lima Florencio, primeiro chefe de Araújo no Itamaraty, no início dos anos 1990.
Não houve sequer uma palavra, por exemplo, sobre projetos de abertura comercial, caros à linha liberalizante do governo — o comércio exterior ficará mais a cargo do Ministério da Economia, de Paulo Guedes. Araújo, entretanto, pode ter seu momento de glória na segunda quinzena de março, quando deve acompanhar Bolsonaro em viagem oficial a Washington. O chanceler vai se esforçar para concretizar o encontro com Donald Trump, ainda a ser confirmado pela Casa Branca. Ernesto Araújo se verá, então, frente a frente com o salvador da civilização ocidental.
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Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624
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