Para efeitos estatísticos, são consideradas pobres as pessoas cuja renda não é suficiente para custear despesas com alimentação, moradia e vestuário. Abaixo disso, há uma segunda classe que não consegue ter o bastante, nem sequer, para suprir a mais básica das necessidades humanas: a de comida. São os chamados miseráveis ou indigentes. Em 2002, quando Lula venceu sua primeira eleição para presidente da República, havia 72 milhões de brasileiros nessas duas situações. Desse universo, 49 milhões viviam abaixo da linha da pobreza, o equivalente na época a 27% da população.
Vinte anos depois, Lula se prepara para assumir o governo pela terceira vez. Muita coisa mudou nesse período — algumas para melhor, outras para pior, mas o fato é que o petista vai administrar um país diferente do de 2002. O Brasil de 2022 é mais avançado, multiplicou sua geração de riquezas quase dez vezes, reduziu à metade o índice de analfabetismo, tem uma expectativa de vida seis anos mais alta, registra proporcionalmente menos mortes violentas e produz alimentos suficientes para abastecer 1 bilhão de pessoas. Apesar disso, voltando à mais triste das estatísticas, o país ainda tem 30 milhões de pessoas sobrevivendo com menos de 16 reais por dia. Para o Banco Mundial, essa é a linha tênue que, em países como o Brasil, separa aqueles que não têm renda suficiente para suprir as necessidades básicas daqueles que não ganham o mínimo necessário para comprar comida.
Se comparado a 2002, há quase 20 milhões de miseráveis a menos, apesar de a população ter crescido 19%, ou mais 35 milhões de pessoas, no mesmo período. É um número positivo, mas que não deve ser festejado — muito pelo contrário. Em vinte anos, alguns países conseguiram reduzir drasticamente seus índices de pobreza e extrema pobreza. A fome no Brasil, porém, continua sendo um flagelo que desafia governos, incluindo o novo que se inicia em 1º de janeiro.
Na campanha de 2002, a principal promessa do então candidato Lula era, nas palavras dele, garantir que todo brasileiro fizesse três refeições diárias. Houve avanços significativos nessa direção, mas ele não conseguiu cumprir a promessa. Lula terá agora sua terceira chance. “Se quando eu terminar esse mandato, cada brasileiro estiver tomando café, estiver almoçando e estiver jantando, eu terei cumprido a missão da minha vida”, repete o presidente, como se fosse um mantra.
Lula tem 77 anos, já foi um número dessa terrível estatística, sabe o que é passar fome e, por isso, não há por que duvidar de suas intenções. A primeira ação do petista, mesmo antes de tomar posse, foi negociar pessoalmente a aprovação da PEC que garantiu o pagamento de 600 reais por mês aos beneficiários do Auxílio Brasil, ou Bolsa Família, como voltará a se chamar o programa assistencial criado pelo próprio Lula em 2003. A medida é necessária, mas não resolve o problema de fundo. “Lá atrás, o Brasil saiu do mapa da fome, mas com a crise econômica de 2014 e a piora na qualidade das políticas públicas essa chaga voltou a crescer”, lembra a professora de ciência política da Unicamp Andréa Freitas. Vale lembrar que a gravíssima crise de 2014, cujas consequências são sentidas até hoje, teve contribuição direta do governo petista de Dilma Rousseff. Por isso, há uma natural preocupação de que o presidente eleito não repita as decisões equivocadas do passado. Infelizmente, os primeiros sinais dados por Lula não permitem muito otimismo nesse aspecto .
Está demonstrado que programas como o Bolsa Família são imprescindíveis, ajudam em parte a reduzir a miséria, garantem votos, mas geram uma falsa sensação de controle da situação. Ao primeiro sinal de crise econômica, tudo vai por água abaixo. “O Brasil vive numa montanha-russa no combate à pobreza. De 2003 a 2010, houve redução de cerca de 50% na fome. Depois, enfrentamos um crescimento muito baixo, uma recessão e, na sequência, veio uma década perdida”, afirma o professor Marcelo Neri, ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Dilma Rousseff e atual diretor da FGV Social. Os estudos provam que a oscilação dos índices de pobreza e miséria está umbilicalmente ligada à situação econômica. A partir de 2014, ano da maior recessão em duas décadas, a curva de brasileiros em situação de extrema pobreza passou a ter uma trajetória ascendente, atingindo no ano passado patamares similares aos de 2010, quando 14% da população brasileira não tinha condições de suprir as necessidades mais básicas de subsistência.
A economia combalida entrou de vez na UTI com a recente crise sanitária, que agravou o quadro geral. Levantamento da FGV Social mostra que, em 2021, ainda sob os efeitos catastróficos da pandemia, 36% dos brasileiros, ou quase 77 milhões de pessoas, afirmaram que, em um período de seis meses, tiveram alguma privação financeira que os impediu de comprar comida, um recorde desde que esse tipo de levantamento passou a ser feito, em 2006. “Lula começará o ano de 2023 com um país melhor do que quando assumiu pela primeira vez, há vinte anos, mas terá de continuar lidando com a tragédia da insegurança alimentar”, avalia Neri. Por isso, ao reforçar que terá cumprido a missão de sua vida se conseguir acabar com a fome no país daqui a quatro anos, Lula estabelece uma prioridade que pode definir o Brasil do futuro. Desde que foi criado o Bolsa Família, os governos já investiram mais de meio trilhão de reais no programa. Sem isso, a tragédia social certamente seria bem maior. Isolado, porém, o assistencialismo não faz milagre.
Em agosto deste ano, VEJA esteve em Serrano do Maranhão, município de 15 000 habitantes onde mais de 80% da população depende de alguma ajuda do governo para ter o que comer. Encontrou centenas de famílias como a da dona de casa Maria de Fátima Coimbra, seis filhos, morando em uma casa construída de barro e bambu, sem água encanada, energia elétrica, televisão ou fogão a gás e cuja única fonte de renda era o Auxílio Brasil. Vinte anos atrás, Fátima, ainda criança, residia no mesmo lugar com a mãe, então beneficiária do Bolsa Família, e seis irmãos. A única diferença significativa entre a vida da mãe e a da filha é que a mãe era analfabeta e Fátima estudou até a 7ª série. A miséria, porém, é a mesma. “Tem dia que a gente almoça, mas não janta”, contou ela. O novo governo, caso realmente esteja disposto a enfrentar esse problema, terá necessariamente de perseguir outras metas. O nível da educação precisa mudar de patamar, o investimento público não pode permanecer atrelado a interesses circunstanciais e os nós que atrapalham o desenvolvimento devem ser desatados rapidamente.
Para além da economia, há desafios políticos e administrativos no início do novo governo. Como ocorreu em 2002, o PT e os partidos de esquerda serão minoria no Congresso. Na Câmara dos Deputados, controlarão cerca de um terço das cadeiras. O presidente eleito, portanto, terá de negociar para formar maiorias e tirar projetos prioritários do papel. Há vinte anos, o ambiente era mais favorável à composição com os parlamentares porque Lula havia vencido com folga nas urnas, a oposição estava enfraquecida e os partidos de centro, ansiosos para embarcar na nau governista. Além disso, os congressistas dependiam da boa vontade do Palácio do Planalto para conseguir verbas para seus respectivos redutos eleitorais. A situação agora é diferente. O país está dividido, há uma oposição parlamentar numerosa e combativa e o Congresso se fortaleceu ao tomar do Executivo fatias bilionárias do Orçamento da União, o que deu autonomia a deputados e senadores para destinar recursos sem ter de pedir antes autorização a ministros e ao próprio presidente da República.
A balança entre Executivo e Legislativo não é tão desequilibrada como foi no passado. A votação da PEC da Transição é uma prova disso. Lula queria que a licença para gastar fora do teto valesse por quatro anos. Para aprová-la no Senado, concordou com a redução para dois anos. A Câmara desidratou ainda mais o texto, reduzindo o prazo a um ano. A proposta recebeu o aval de 331 deputados, 23 a mais do que o mínimo necessário. O recado foi dado: ao recusar uma licença de quatro anos, os deputados deixaram claro que Lula terá de negociar do início ao fim do mandato, ano após ano.
Já no campo econômico, ao tentar embutir na proposta outras despesas e ainda estender essa autorização, Lula mostrou uma inclinação perigosa que, se mantida, pode levar o país a um círculo vicioso conhecido: inflação, aumento de juros, endividamento, queda na produção, desemprego, mais pobreza e miséria. Fernando Schüler, professor de ciência política do Insper e colunista de VEJA, preocupa-se com a possibilidade de retrocessos em medidas que garantem estabilidade jurídica e favorecem os investimentos: “Quando surgiu a notícia de que o novo governo iria mexer no marco regulatório do saneamento, por exemplo, imediatamente muitas empresas que tinham interesse em investir aqui caíram fora”, lembra. Para impulsionar a economia e aumentar as chances de acabar com a fome e a pobreza, a receita não é aumentar o intervencionismo do Estado, como Lula tem insinuado, mas melhorar o ambiente de negócios, com reforma tributária, redução da burocracia e estímulo ao empreendedorismo. “O país já vem avançando muito e precisa de uma sequência de crescimento sustentável de muitos anos. Não se vai criar uma civilização com milhões de pessoas dependendo do Estado”, afirma Schüler.
Há exemplos no mundo de superação de situações de pobreza bem mais complexas que a do Brasil. A da China, por exemplo. Segundo o Banco Mundial, nos últimos quarenta anos cerca de 800 milhões de chineses, o que equivale a quase quatro vezes a população brasileira, deixaram a linha da miséria. O caminho tomado pela ditadura comunista para responder pela queda de 75% nos índices mundiais de indigência foi atingido por meio de amplas políticas públicas de infraestrutura, de educação e por ações governamentais de incentivo ao desenvolvimento de regiões pobres e geograficamente isoladas. Essa receita vale também para democracias. Embora sincero, o simples desejo do presidente de acabar com a fome não é suficiente para definir se isso vai acontecer daqui a quatro, oito ou 500 anos. As ações, sim, podem acelerar ou retardar ainda mais esse processo. Eis aí o grande desafio de Lula.
Colaborou Marcela Mattos
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822