Em maio do ano passado, quando o trabalho do Congresso começava a ganhar tração, o presidente Lula conversou a sós com o comandante da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um antigo opositor que apoiou a fracassada campanha à reeleição de Jair Bolsonaro. Foi uma tentativa de aparar arestas pessoais entre os dois, estabelecer um canal de diálogo e pavimentar o caminho para a aprovação de projetos de consenso entre o Executivo e o Legislativo, com destaque para a agenda econômica. No encontro, Lira reclamou da desarticulação do governo e sugeriu ao petista que anunciasse logo a sua candidatura ao Palácio do Planalto em 2026, a fim de acabar com a rivalidade entre seus ministros, principalmente Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Rui Costa (Casa Civil) e Fernando Haddad (Fazenda). “É o Rui travando o Padilha, que trava o Rui, que trava o Haddad”, reclamou o parlamentar. Tempos depois, como já era esperado, o presidente anunciou que tentará um novo mandato na próxima eleição, mas, ao contrário do que esperava Lira, essa iniciativa não inibiu as brigas e as sabotagens dentro governo, num sinal claro de que, se a orquestra oficial continua desafinando, a culpa é do regente, ele mesmo, Lula.
Aliados e assessores do presidente admitem que o governo está descoordenado e disfuncional, mas evitam debitar o problema só na conta do mandatário. Eles alegam que Lula teve de se dedicar em 2023, após a invasão e a depredação das sedes dos três poderes, à defesa da democracia e à reconstrução de pontes institucionais dinamitadas pelo bolsonarismo. Além disso, também em resposta a uma herança maldita deixada pelo antecessor, Lula deu prioridade no ano passado à agenda internacional e à tentativa de devolver ao Brasil certo protagonismo em determinados debates globais, como na área do meio ambiente. Os assuntos domésticos teriam ficado em segundo plano, mas a expectativa era de que seriam encaminhados — com planejamento, coordenação e eficiência — em 2024, o que ainda não ocorreu. O governo continua a bater cabeça em setores estratégicos, como economia, articulação com o Congresso e relações internacionais, e ainda lida com disputas de poder entre seus principais quadros, sem que o presidente arbitre as contendas ou deixe claro o rumo a ser seguido — se é que há um rumo definido.
O caso da política econômica é emblemático. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, até conseguiu manter a meta de déficit zero para este ano, apesar da ofensiva contrária do chefe da Casa Civil, Rui Costa, da presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, e do próprio Lula, que chegou a declarar que a meta “dificilmente” seria cumprida e que não faria “corte de bilhões” em obras e programas para alcançá-la. Sem contar com o apoio do presidente e de colegas de governo para manter seu plano de ajuste fiscal, Haddad foi obrigado a anunciar uma redução das metas para 2025 (de superávit de 0,5% do PIB para déficit zero) e para 2026 (superávit de 0,25%, e não mais de 1% do PIB). Na prática, a mudança significa que, ao contrário do que queria o ministro, haverá mais gasto público, exatamente como defendia a classe política, o que pode contribuir para o aumento dos juros e da dívida pública e, ao mesmo tempo, atrapalhar o crescimento da economia. “A área econômica sempre estará um pouco isolada. Em qualquer governo, é uma atividade dura, muito solitária”, afirmou um resignado Haddad em entrevista à GloboNews. “Não é fácil botar ordem nas contas.”
Mesmo após serem revisadas para baixo, as metas fiscais dificilmente serão atingidas, conforme avaliação do mercado e até de integrantes do governo. Um dos motivos é a dificuldade para aumentar a arrecadação federal. As fontes de receitas, conforme definição da ministra do Planejamento, Simone Tebet, estão praticamente “exauridas”. Outra razão é a recusa de Lula em promover um programa consistente de corte de despesas, por meio, por exemplo, de uma reforma administrativa. O presidente sempre foi um entusiasta da ideia — simplista e errada — de que gasto é vida. Rui Costa, seu mais poderoso assessor no Planalto, vive a argumentar que o ajuste fiscal proposto por Haddad pode prejudicar o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), assim como o pagamento de dividendos extras pela Petrobras — rejeitado por Costa e defendido por Haddad — poderia, segundo o chefe da Casa Civil, inviabilizar o plano de investimentos da companhia. O duelo entre os dois ministros é permanente e se desenrola longe dos holofotes com muito mais intensidade do que parece.
Na entrevista à GloboNews, Haddad elogiou petistas por promoverem o debate público e contestarem decisões da Fazenda, mas reclamou do fogo amigo que arde nos bastidores: “Às vezes, você gera ruídos absolutamente desnecessários que atrasam a agenda”. O ministro acrescentou: “Atrapalha quando o jogo é cifrado, quando não fica claro quem está falando”. O rival não deixa barato. No início do governo, Rui Costa disse publicamente que seria falta de sensibilidade política reonerar os combustíveis, como queria Haddad. Desde então, a rixa ganhou ritmo e temperatura. Na semana passada, o chefe da Casa Civil xingou Haddad numa conversa com aliados por considerar que o ministro da Fazenda estaria por trás da retomada pela imprensa de um caso de desvio de recursos públicos, investigado de forma sigilosa no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Revelado por VEJA em outubro de 2022, esse inquérito apura uma série de irregularidades na compra de respiradores, durante a pandemia de covid-19, pelo Consórcio Nordeste, na época presidido por Rui Costa. O caso, que já motivou até um acordo de delação premiada de um dos envolvidos no esquema, paira como uma ameaça sobre a cabeça do chefe da Casa Civil. “A briga do Haddad com o Rui é de morte. Um esculhambando o outro. É a concorrência pela sucessão do Lula”, afirmou a VEJA um parlamentar, que pediu para não ser identificado.
Na quarta-feira 17, o chefe da Casa Civil deixou a contrariedade de lado e foi só altivez em entrevista à CNN Brasil: “O povo brasileiro espera ações das pessoas que estão em cargo público que melhorem a sua vida. É isso que eu foco toda vez que acordo e saio de casa. Quando você enxerga isso, diminui a importância de eventuais diferenças pessoais”. Em seu primeiro mandato, iniciado em 2003, Lula viu se desenrolar uma disputa de poder entre o titular da Casa Civil, José Dirceu, e o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Os dois sonhavam ser escolhidos pelo chefe para sucedê-lo na Presidência. Os dois, em diferentes momentos, acabaram atingidos por escândalos de corrupção e ficaram pelo caminho. Palocci até hoje acredita ter sido abatido por fogo amigo petista. Como seus antecessores, Rui Costa e Fernando Haddad também nutrem o desejo de disputar a Presidência. As pretensões eleitorais de ambos e as rusgas entre eles viraram tema recorrente das conversas entre políticos. O ex-todo-poderoso Dirceu, por exemplo, tem criticado Rui Costa e defendido Haddad. Dirceu chega a dizer que o atual chefe da Casa Civil acha que pode derrubar o ministro da Fazenda, o que seria um tremendo erro de avaliação.
Já Lula, como de costume, prefere estimular a cizânia entre seus aliados e subordinados. Ele até intervém às vezes, mas nem sempre para encerrar os embates. Há situações em que prefere colocar mais lenha na fogueira. Foi o que fez na tensa relação com Arthur Lira. Depois de o plenário da Câmara manter a prisão do deputado Chiquinho Brazão, acusado de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco, o presidente da Casa acusou o ministro Alexandre Padilha, responsável pela articulação política do governo, de ser a fonte de reportagens que consideravam o desfecho da votação sobre Brazão uma derrota de Lira. Em público, o deputado chamou Padilha de “incompetente” e “desafeto pessoal”. O ministro reagiu dizendo apenas que não desceria ao nível de Lira. Lula, então, resolveu participar do tiroteio verbal tomando partido de seu auxiliar: “Só de teimosia, Padilha vai ficar muito tempo nesse ministério”. O presidente quis mostrar quem manda, o que não é necessário nem condiz com a liturgia do cargo. Com o rompante, só conseguiu agravar a situação. À frente da Câmara, Lira tem o poder de atrasar ou destravar projetos, instalar CPIs e até fazer avançar pedidos de impeachment. A líderes partidários, o deputado deixou a impressão de que retaliará o governo, que até hoje não conseguiu formar maioria na Câmara e, por isso, depende — e muito — da ajuda de Lira.
Para piorar a situação, no mesmo dia em que Lula defendeu Padilha, o ministro do Desenvolvimento Agrário, o petista Paulo Teixeira, avisou Lira de que um primo do deputado seria exonerado da superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Alagoas, por pressão do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Teixeira não esperou o deputado indicar um novo nome ao cargo antes de efetivar a mudança, nem informou Padilha da demissão, o que deveria ter ocorrido num governo minimamente organizado, já que Padilha controla as negociações políticas envolvendo cargos públicos. A exoneração foi formalizada um dia depois de Lula anunciar um plano de reforma agrária com o objetivo de conter a insatisfação do MST, que horas antes da solenidade no Planalto havia invadido uma fazenda da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Petrolina, Pernambuco. Líder do governo na Câmara, o petista José Guimarães disse a VEJA que a demissão do primo de Lira foi “um negócio descabido”, por não ter sido feito de forma combinada com o deputado. Ele também reconheceu que a votação do caso Brazão e o Abril Vermelho, mês de mobilização do MST, ajudaram a inflamar a temperatura na Câmara. “Não do Arthur Lira, mas do governo e da oposição.”
Diante de ânimos tão exaltados, Lula resolveu agir para desanuviar o ambiente. Durante a visita oficial à Colômbia, o petista telefonou para Guimarães e pediu que marcasse uma conversa entre ele, Lula, e o presidente da Câmara. Se dependesse de Lira, José Guimarães teria substituído Padilha ainda no ano passado como ministro de Relações Institucionais. “O país tem coisas muito maiores que dependem da Câmara e do Congresso. Então, brigas e erros de um ou de outro não podem contaminar esse ambiente civilizado e de parceria que nós temos”, afirmou o líder do governo. Aliados também reconheceram a importância de Lula participar de forma mais efetiva das negociações com os congressistas, o que poderia destravar projetos de interesse da equipe econômica — desde textos pontuais, como a redução da abrangência de um programa de alívio tributário para o setor de eventos, o Perse, até a regulamentação da reforma tributária. “Tem coisas maiores que o país precisa discutir. Eu preciso dar conta da minha tarefa, o Padilha precisa dar conta da tarefa dele, e os demais não podem errar para não atrapalhar o governo, como foi esse erro lá de Alagoas”, disse o líder. No ano passado, aos trancos e barrancos, o Congresso aprovou quase toda a pauta econômica do governo, que distribuiu cargos e emendas em retribuição.
A questão é que o grande desafio do presidente não está fora, mas dentro de sua gestão. Desde meados de 2023, a avaliação positiva de Lula e do governo tem caído. Mesmo com a melhora do nível de emprego e da renda do trabalhador, mesmo com a inflação sob controle, aumentou o pessimismo da população com a economia. Uma série de outros fatores ajuda a entender a desidratação da imagem, incluindo as manifestações presidenciais sobre política externa. Essa é outra área em que o governo desafina porque o maestro ora segue a cartilha de seu assessor especial, Celso Amorim, mais ideológica e afinada à doutrina petista, ora segue o profissionalismo da chancelaria brasileira, comandada pelo ministro Mauro Vieira, comprometido com a tradição nacional de conciliação e moderação. Esse descompasso levou o governo brasileiro, entre outras coisas, a demorar para chamar de terroristas os terroristas do Hamas e também demorar para cobrar do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, explicações para o veto a oposicionistas nas eleições presidenciais marcadas para este ano. A guinada no caso venezuelano não foi motivada por convicção, mas por pressão da opinião pública — ou pelo desejo de estancar a sangria nas pesquisas.
Um dos políticos mais experientes do país, Lula já foi comparado a Pelé, o rei do futebol, por seu ex-chefe de gabinete, Gilberto Carvalho. Desde os tempos em que liderava a oposição, o presidente é tratado como fora de série, um animal político, um expert na arte de atrair aliados e superar adversidades. Sua desforra contra a Lava-Jato é uma prova disso. Já sua atuação no terceiro mandato presidencial coloca a fama em xeque. Distante dos problemas da população e dos desafios da máquina pública, o petista comanda um governo descoordenado, emite sinais contraditórios e permite que seus principais auxiliares sabotem uns aos outros. Ao relatar a conversa que teve com o presidente no início do ano passado, Lira não escondeu seu espanto: “Um homem com três mandatos, um Pelé da política… O que o presidente precisa fazer é chamar o feito à ordem”. Faz sentido. Como o craque que imagina ser, Lula tem de entrar em campo, colocar a bola embaixo do braço e ditar o rumo da partida. Ela ainda tem resultado indefinido, mas, segundo os próprios petistas, a peleja pode ser perdida se o presidente não tomar conta do jogo — ou se continuar sem reger a orquestra.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889