Movimentos que reivindicavam a separação de parte do território nacional são uma constante na nossa história desde o Império, quando revoltas populares e conflitos armados tentaram, a ferro e fogo, fazer com que a colônia se tornasse independente de Portugal — alguns, como a Revolução Pernambucana, em 1817, ou a Farroupilha, em 1835, no Rio Grande do Sul, alcançaram o objetivo, ainda que por um breve tempo. A insatisfação de parte dos estados com o poder central ou com outras unidades da federação também motivou alguns dos principais solavancos institucionais do começo da República, como o golpe de 1930, no qual Getúlio Vargas enterrou a aliança de Minas Gerais e São Paulo, ou a Revolução de 1932, quando o governador Pedro de Toledo mobilizou quase 200 000 paulistas para pegar em armas contra o mesmo Getúlio. A Carta de 1988 consolidou a formação indissolúvel dos estados em uma só federação e estabeleceu como inconstitucional qualquer tentativa de sua dissolução.
Hoje, sem qualquer revolução no horizonte e com a jovem democracia brasileira tendo resistido recentemente a graves provações, uma nova batalha federativa se anuncia para os próximos meses, sendo que os lances dessa briga se dão nos bastidores do Congresso e as armas são as articulações políticas. O pivô do embate é o projeto de reforma tributária aprovado na Câmara e em discussão no Senado. No cerne da discórdia está uma discussão antiga: quanto cada ente federado irá contribuir e quanto vai receber da União.
Quem verbalizou de forma destrambelhada a temperatura atual do embate foi Romeu Zema (Novo), o comandante de Minas Gerais. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ele reclamou do protagonismo conferido pela União ao Norte e Nordeste, enquanto os estados mais ricos do país, reunidos no Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud), os que mais arrecadam impostos, ficam a ver navios, segundo avaliação do governador mineiro. Em uma declaração politicamente desastrada para quem tem pretensões nacionais, como parece ser o caso de Zema, ele chegou a comparar os dezesseis estados nortistas e nordestinos a “vaquinhas que produzem pouco”, mas recebem um “tratamento bom” do produtor rural, em detrimento das que “estão produzindo muito”. Acirrando a discussão em torno de quem ganha e quem perde na União, Zema colocou a reforma tributária como ponto central da tensão. Ele citou como território a ser defendido a todo custo o desenho do Conselho Federativo, que administrará a arrecadação do imposto sobre bens e serviços (IBS), previsto na reforma, que levará em conta critérios populacionais na definição do poder de veto no colegiado. Para ele, isso foi uma vitória dos governadores do eixo Sul-Sudeste, em uma amostra do peso desses estados, que concentram cerca de 56% da população brasileira. Os políticos de outras regiões batalham para mudar a regra.
A declaração de Zema provocou reações críticas de integrantes do governo, do Congresso e de outros estados. Ao seu estilo lacrador, o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou ser um “absurdo que a extrema direita esteja fomentando divisões regionais”. Citando o mineiro Juscelino Kubitschek, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que Minas não cultiva a exclusão. Em carta assinada pelos nove governadores da região, o Consórcio Nordeste apontou que Zema insinua tensionamento com regiões penalizadas nas últimas décadas e que a entidade representa “uma maneira de compensar, pela organização regional, as desigualdades históricas de oportunidades de desenvolvimento”. “Se o Zema tem pretensões nacionais, com essa fala não conseguiria voto nenhum no Nordeste”, diz o governador da Paraíba e presidente do consórcio, João Azevêdo (PSB). Entre os governadores do Cosud, embora seja consenso que os estados-membros devam atuar mais unidos, foi dito nos bastidores que o mineiro “não é porta-voz” da turma. Enquanto o presidente do grupo, o governador do Paraná, Ratinho Jr. (PSD), optou pelo silêncio, o do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), tentou colocar panos quentes — defendeu o Cosud e ressaltou não se tratar de uma frente “de estados contra estados ou de regiões contra regiões”.
As falas de Zema e a repercussão delas no meio político prenunciam diferenças que tendem a se tornar mais visíveis com a chegada da reforma tributária ao Senado. A Casa, afinal, representa a federação no Congresso e por lá, ao contrário da Câmara, onde as bancadas são proporcionais à população, cada unidade federativa dispõe das mesmas três cadeiras. Assim, os dezesseis estados do Norte e do Nordeste somam 48 senadores, mais que o dobro dos 21 do Sul e Sudeste, configuração que favorece alterações no texto aprovado pela Câmara. Governadores e políticos nortistas e nordestinos são críticos contumazes da formatação do Conselho Federativo que vai gerir o IBS, em razão do critério de que, no colegiado, os vetos podem ser feitos com a anuência de estados que somem 60% dos brasileiros. A aprovação desse dispositivo pela Câmara é atribuída pelos críticos a concessões aos governadores dos estados mais ricos, como Tarcísio de Freitas, de São Paulo. “É impossível o modelo aprovado na Câmara passar no Senado”, diz o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Relator da reforma tributária na Casa, Eduardo Braga (MDB-AM) tem cogitado uma solução intermediária: a elevação do critério para 80% de representação da população. “Só assim ninguém vai poder excluir o Nordeste, o Norte e as pequenas cidades”, afirma Braga.
Além do Conselho Federativo, outro ponto da reforma que divide fortemente os governadores é a utilização do bilionário Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. Ele será criado para compensar estados que perderam arrecadação devido ao fim de alguns incentivos fiscais. O grupo Sul-Sudeste teme que esse mecanismo seja distorcido pela força política do Norte-Nordeste, privilegiando apenas essas regiões, enquanto também há pobreza em estados como São Paulo e Minas. Há também críticas a regimes tributários diferenciados, como a Zona Franca de Manaus. O gaúcho Eduardo Leite tem atacado o que vê como “manutenção casuística de regimes diferenciados e benefícios fiscais”. Outro tema que preocupa, sobretudo em estados mais industrializados, é a mudança para fixar a arrecadação de impostos no local onde se dá o consumo de um bem, e não na origem, onde ele é produzido.
Reclamações à parte, o fato é que, conceitualmente, essa reforma tributária acerta na tentativa da criação de mecanismos mais claros para reduzir as desigualdades sociais nas diversas regiões. Afinal, estados menos favorecidos e com maiores deficiências precisam mesmo serem beneficiados pela União com a distribuição de mais recursos, até que se estabeleça mais equilíbrio. A verdadeira distorção, como se sabe, é causada predominantemente pelo mau uso do dinheiro público, os projetos equivocados e o ralo da corrupção. O professor Gustavo Fossati, da FGV Direito Rio, doutor em direito tributário pela Universidade de Münster, na Alemanha, lembra que a redução das desigualdades é uma obrigatoriedade prevista no artigo 3º da Constituição, que estabelece o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República.
Uma das principais ferramentas de que a União dispõe para tal são as políticas de subsídios para regiões e estados menos desenvolvidos. Autor do livro O Colapso das Finanças Estaduais e a Crise da Federação, Francisco Luiz Cazeiro Lopreato, professor do Instituto de Economia da Unicamp, observa que essa discussão é “antiga e ampla” e acompanha a própria formação do Brasil como nação. “Sempre esteve na mesa, sempre foi discutida e nunca foi efetivamente tratada”, diz. O economista ressalta que a principal preocupação dos entes que participam dessa discussão é manter o status quo e evitar a própria perda de arrecadação. É esse pensamento que está por trás da fala de Zema. “Não há essa percepção de solidariedade federativa. O que não está sendo discutido nesta reforma, e que deveria ser feito, é uma forma de equalização fiscal para tratar da desigualdade regional por completo”, pondera.
Além de aspectos econômicos, é inegável que a atual tensão também inclui um pano de fundo político-eleitoral. Afinal, com a inelegibilidade de Jair Bolsonaro e o espólio do eleitorado bolsonarista em aberto, os principais líderes da centro-direita cotados como presidenciáveis para 2026 são governadores de estados do Sul e do Sudeste: Romeu Zema, Tarcísio de Freitas, Eduardo Leite e Ratinho Jr. “Zema sabe que, no Brasil, a polarização tem sido a base das campanhas eleitorais. Por isso, ele toma para si esse discurso, que ganha adesão daqueles que têm a crença de que Sul e Sudeste são a locomotiva do país”, diz Rodrigo Prando, cientista político e professor do Mackenzie. A atuação conjunta dos estados mais ricos também evidencia, como já disseram abertamente membros do Cosud, uma reação (ou “inspiração”, como admite Leite) aos já estabelecidos consórcios da Amazônia Legal e do Nordeste – este uma relevante força de oposição a Bolsonaro, sobretudo na pandemia. Os estados dessas regiões tiveram influência renovada sob o governo Lula. Entre os 37 ministros, nada menos que seis são ex-governadores do Norte e Nordeste que concluíram suas gestões em 2022 e ocupam pastas vistosas como Casa Civil, Justiça, Educação, Desenvolvimento Social, Transportes e Desenvolvimento Regional. Os líderes do governo no Senado, Câmara e Congresso são da Bahia, do Ceará e do Amapá, respectivamente.
Os próximos capítulos das divergências regionais no país se desenrolarão de forma lenta no Senado. A previsão é que a reforma tributária seja votada em outubro. Antes, o texto passará por discussões em colegiados como a Comissão de Constituição e Justiça e a Comissão de Assuntos Econômicos, o que dará tração aos embates. Apesar das tensões, é fundamental que, em um país com um sistema tributário caótico como o Brasil, a política encontre os denominadores comuns que permitam a aprovação de uma reforma tão necessária. Tentações eleitorais são costumeiras, como mostrou Zema em suas declarações tortuosas, mas é preciso resistir a elas. Até porque falas como as do mineiro são um belíssimo tiro no pé de quem pretende um dia comandar o país.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854