Quando foi eleito governador do Maranhão, em 2014, Flávio Dino rompeu a hegemonia política de cinco décadas da família Sarney e provocou uma rearrumação das forças políticas locais. Nos últimos nove anos, oito deles comandando a máquina do estado e um como senador eleito licenciado para comandar o Ministério da Justiça, Dino conseguiu estruturar o seu próprio grupo político, reunindo uma gama numerosa de partidos de diversas vertentes ideológicas — do PP ao PCdoB —, que no caminho abarcou inclusive a própria família Sarney. Afastado formalmente da política desde novembro passado, quando foi indicado pelo presidente Lula a ministro do Supremo Tribunal Federal — cargo que assumiu em fevereiro deste ano —, Dino vê a barca política que montou ainda em pleno movimento nas eleições deste ano.
Há sinais da herança do agora ministro do STF em todo lugar. A começar pelo candidato escolhido pelo seu antigo grupo para disputar a prefeitura de São Luís. O deputado federal Duarte Jr., do mesmo partido ao qual Dino pertencia, o PSB, é um professor universitário e advogado de 37 anos que entrou para a política pelas mãos de Dino, a quem até hoje se refere como “professor”. Ex-aluno do hoje ministro na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Maranhão, o postulante a prefeito foi convidado, logo após a formatura, para o comando de postos da administração estadual quando o seu professor virou governador. A chefia de órgãos como o Procon e o Viva Cidadão (serviço de emissão de documentos) o credenciou a ser eleito deputado estadual em 2018 e federal em 2022, ambos com o apoio do padrinho. Sua única derrota eleitoral foi em 2020, quando tentou a prefeitura de São Luís pela primeira vez. Na ocasião, foi superado pelo então deputado federal Eduardo Braide (PSD), que neste ano tenta a reeleição.
Outra evidência do legado de Dino é a aliança montada para a disputa pela prefeitura. Das dez legendas que apoiaram as campanhas de Dino ao Senado e de seu vice, Carlos Brandão, ao governo do estado, em 2022, nove estarão na campanha de Duarte Jr. (veja o quadro). No total, a coligação terá doze partidos, reproduzindo a miscelânea ideológica característica das alianças formadas pelo seu padrinho. A chapa reúne siglas à direita e à esquerda e traz um ineditismo na atual campanha: é a única coligação de candidato a prefeito em uma capital que reúne PT e PL no mesmo palanque. A união entre as legendas que polarizam o cenário nacional tem potencial para criar atritos. No início do mês, o PL divulgou resolução proibindo alianças de seus filiados com partidos de esquerda, em especial o PT e o PSOL. Integrantes do grupo afirmam que pretendem contornar a situação com diálogo. O argumento é o de que o presidente do PL no estado, o deputado federal Josimar Maranhãozinho, é distante do bolsonarismo e tem relação antiga e consolidada com Duarte Jr., a quem apoiou na eleição municipal de 2020. “Nossa chapa simboliza o que é a sociedade, plural, onde as pessoas divergem sem se tornarem inimigas”, afirma Duarte Jr., lembrando que o PL integrou o governo do Maranhão durante a gestão de Flávio Dino. “Conseguimos mostrar unidade, compor uma frente ampla e demonstrar que a vontade de fazer uma São Luís melhor é maior que as diferenças”, argumenta.
Além do governador Carlos Brandão e do candidato a prefeito de São Luís, outros aliados importantes de Dino seguem no topo da articulação política do estado. A fidelidade ao hoje magistrado gerou até uma situação esdrúxula do ponto de vista partidário, mas que se explica pelas articulações e movimentos políticos locais de seus atores. A senadora Eliziane Gama (PSD-MA), que está temporariamente afastada do Senado, já declarou apoio à candidatura de Duarte Jr. em vez de se aliar ao atual prefeito Eduardo Braide, que é de seu partido. Embora esteja hoje no PSD, Eliziane fez parte das coligações de Dino desde 2014 e atuou no Senado a favor da nomeação dele para o STF. “Foi um acerto que fizemos quando da minha filiação ao PSD, e isso foi acertado com Gilberto Kassab”, diz ela, referindo-se ao presidente nacional da sigla.
O domínio do grupo montado por Dino no estado ofusca até o maior ícone político local. O ex-presidente José Sarney, do alto de seus 94 anos, tem recebido pessoas e aparecido em fotos com políticos, mas deve se manter neutro na eleição deste ano. A avaliação de interlocutores é a de que seu poder de influência, no entanto, ainda é grande, não só do ponto de vista político, mas também pelo fato de controlar veículos de comunicação locais. José Sarney, assim como Roseana Sarney, foram derrotados por Dino em 2014, mas se aproximaram do hoje ministro — tanto que, em 2022, Roseana foi eleita deputada federal pelo MDB na coligação formada pelo então governador. Hoje, o MDB está dividido. O diretório estadual, presidido por Marcus Brandão, irmão do governador Carlos Brandão, apoia Duarte Jr., enquanto a direção municipal, presidida pelo deputado Cleber Verde, seguirá ao lado de Eduardo Braide. O presidente nacional da legenda, Baleia Rossi, garante que não há atrito. “Foi tudo acertado previamente”, diz.
O controle do estado por famílias tradicionais é uma marca no Maranhão. O principal adversário do grupo criado por Dino, o prefeito Eduardo Braide, de 48 anos, vem de uma família conhecida na política, embora de alcance regional. É filho do ex-deputado estadual Carlos Braide e irmão do deputado estadual Fernando Braide (PSC). Ele mesmo passou pela Assembleia Legislativa do Maranhão, por dois mandatos, e pela Câmara dos Deputados antes de se eleger prefeito. Nesta campanha à reeleição, seu principal desafio é se desvencilhar do caso que está sendo chamado de “carro do milhão”. No final de julho, a polícia apreendeu um veículo com 1,1 milhão de reais em dinheiro em seu interior. Diversos elementos reunidos pela investigação ligam o veículo, o local onde ele foi estacionado e os dois homens flagrados por câmeras de segurança ao prefeito e sua família. A polícia local estima que a investigação dure de dois a seis meses, mas é certo que o assunto será explorado na campanha. “Quem não deve não teme, pois sei que nada tenho a ver com esse episódio”, diz Braide. Outro desafio será impedir a nacionalização do debate e focar nos assuntos da cidade. Enquanto Duarte Jr. vai explorar a imagem e o apoio de Lula, com previsão até de receber o presidente na cidade em setembro, Braide tentará evitar que seja impingida a ele a imagem de candidato bolsonarista.
Padrinho de Duarte Jr., Dino alcançou o protagonismo político no Maranhão com a vitória ao governo estadual em 2014, quando fez toda a sua campanha focada na necessidade de derrotar o clã Sarney. “Hoje viramos a página do nosso estado. Finalmente entramos no século XXI. Derrotamos para sempre o coronelismo e o regime oligárquico maranhense”, disse logo após a vitória. Uma de suas críticas ferozes era à situação de miséria que imperava no estado, mas o Maranhão que deixou para seu grupo não avançou muito no combate a essa chaga: tem o pior índice de desenvolvimento humano (IDH) e a pior renda domiciliar per capita do país, segundo os dados mais recentes. O desafio de derrotar a pobreza permanece — assim como permanecem os arranjos com as tradicionais oligarquias e a forte influência do atual ministro do STF na cena política local.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905