Como óleo e cerveja
A intervenção atabalhoada do presidente no preço do diesel mostra que seu pendor populista nem sempre se mistura bem ao liberalismo da equipe econômica
“Não sei nem do que vocês estão falando”, disse Paulo Guedes, na sexta-feira 12, aos jornalistas brasileiros que o cercaram, em Washington, com perguntas sobre a intervenção que o governo havia feito na Petrobras para suspender o aumento no preço do óleo diesel. Ninguém do Brasil se lembrou de informar a medida ao ministro da Economia, que fazia um tour por instituições financeiras internacionais — e por isso Guedes só pôde oferecer à imprensa o que chamou de “silêncio ensurdecedor”. O responsável por puxar o tapete do ministro no momento em que ele promovia, nos Estados Unidos, a imagem de um novo país que respeita a liberdade de mercado foi seu próprio chefe: o presidente Jair Bolsonaro preocupou-se em agradar aos caminhoneiros, categoria que apoiou sua candidatura — e que, no ano passado, paralisou o abastecimento do país com uma greve de dez dias. A suspensão do aumento não durou: na quarta-feira 17, um dia depois de o governo lançar um pacote de afagos aos caminhoneiros, o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, anunciou afinal um acréscimo médio de 10 centavos no preço do litro do diesel. Mas então o mercado já passara por um susto tremendo: a Petrobras perdeu 32 bilhões de reais em valor de mercado. Embora Guedes tenha feito de tudo para minorar o estrago — chegou a sugerir, de forma pouco convincente, que Bolsonaro não cancelara o aumento, apenas pedira informações sobre a precificação —, o arroubo intervencionista deixou a nu a contradição entre a personalidade nacional-populista do presidente e o liberalismo da equipe econômica. E assustou o mercado.
A distribuição de produtos no Brasil tem uma crônica dependência do transporte rodoviário. Essa situação foi agravada por facilidades de crédito para a compra de caminhões criadas pelos governos do PT, o que aumentou a oferta de transporte, sem que a economia, em recessão, absorvesse essa nova oferta. Diante de tantos problemas sem solução imediata, é compreensível que o governo se preocupe em não desagradar aos profissionais responsáveis pelo abastecimento do país. Mas a proximidade com as pautas corporativas da categoria pode estar indo além do desejável. Em 27 de março, um grupo de WhatsApp de lideranças de caminhoneiros recebeu um áudio atribuído ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Em mensagem de um minuto e quarenta segundos (ouça), o ministro da Casa Civil assegura estar trabalhando em “várias coisas bacanas” para a categoria. “Já demos uma trava na Petrobras”, afirmou Lorenzoni. A “trava” dizia respeito à mudança na periodicidade com que se altera o preço do diesel, anunciada no dia anterior pela estatal. Duas semanas depois, o ministro recebeu alertas de dois líderes caminhoneiros sobre a insatisfação com o aumento, anunciado na quinta-feira 11, de 5,7% no preço do diesel. Uma dessas mensagens fazia ameaça de nova greve. Como a classe dos caminhoneiros não tem uma liderança única, seria difícil avaliar a gravidade do alerta. Sem consultar Guedes, Bolsonaro ligou para Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, para perguntar se ele iria colocar “diesel no meu chope” na comemoração dos 100 dias de governo. O aumento foi congelado.
No Congresso, onde parlamentares reclamam que a Casa Civil não tem com eles a interlocução que abre aos caminhoneiros, Bolsonaro já ganhou o apelido de “Dilma de calças”, em alusão ao voluntarismo econômico da presidente petista. A conversão de Bolsonaro ao liberalismo ao longo da campanha eleitoral, mesmo que hesitante (ele ainda falava em estatais “estratégicas”), animou o mercado e elevou o Índice Bovespa. A euforia passou. Empresários e investidores mantêm o apoio ao governo, sobretudo na difícil pauta da Previdência — uma reforma que Bolsonaro encampou sem paixão: admitiu, em uma de suas lives nas redes sociais, que não queria ter de fazê-la. A desilusão, porém, começa a despontar entre os agentes do mercado. “Paulo Guedes exerce influência sobre o governo, mas ela tem limite. É difícil imaginar que o governo será liberal quando o presidente não tem essa cabeça”, diz Evandro Buccini, economista-chefe da consultoria Rio Bravo. No início deste mês, a FGV anunciou que o Índice de Confiança Empresarial (ICE), medido ao longo de março, caiu 2,7 pontos e atingiu o menor nível desde outubro de 2018.
A reforma da Previdência travou, na quarta-feira passada, em uma sessão bagunçada na Comissão de Constituição e Justiça. Mas pautas liberais que não dependem tanto do Congresso andam igualmente devagar. O ambicioso plano de privatizações, que deveria arrecadar 1 trilhão de reais, ainda patina. Houve claros recuos, como a desistência de vender ou fechar o canal de televisão EBC (que ninguém vê) e a estatal do trem-bala, a EPL. A privatização da Eletrobras também está atrasada. Bolsonaro inflama causas morais, mas não inspira o ímpeto liberalizante. “Não foram os ministros da Economia de Ronald Reagan e Margaret Thatcher que fizeram governos liberais, foram os próprios chefes de governo”, adverte Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados. No círculo familiar do presidente, o liberalismo também tem baixa penetração. O deputado Eduardo Bolsonaro seria o filho iniciado na cabala dos economistas austríacos e da Escola de Chicago: fez um curso de pós-graduação no Instituto Mises, think tank dedicado ao proselitismo liberal. Há duas semanas, porém, sua fé no mercado balançou: ele disse que a suspensão do aumento do diesel era “necessária”, e que o fim do intervencionismo teria de ser realizado em “passos graduais”.
Depois do “silêncio ensurdecedor”, Guedes voltou a falar, e muito: entrou em campo para reafirmar sua confiança na aliança entre conservadores e liberais que faria do atual governo um sopro renovador depois de décadas de orientação social-democrata no país. No recente Fórum VEJA EXAME, que debateu os primeiros 100 dias de Bolsonaro, o sociólogo Demétrio Magnoli definiu essa aliança de ocasião em termos menos otimistas: de um lado, o liberalismo da turma de Guedes; de outro, não o conservadorismo clássico, mas o nacional-populismo de Bolsonaro. “Essas doutrinas não se misturam”, disse. “São como óleo e água.” Ou como cerveja e diesel.
Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631
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