A festa que reuniu milhares de pessoas na Avenida Paulista na noite de domingo coroou um projeto de poder que começou a ser executado há mais de uma década. Em cima do caminhão de som, Lula, suado e rouco, discursou para uma multidão visivelmente emocionada. Ao lado dele, Janja, a futura primeira-dama, pulava freneticamente. Coadjuvantes do espetáculo refletiam, cada um à sua maneira, a euforia de um momento singular. O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin acenava ao público com as mãos em forma de coração. O ex-ministro Fernando Haddad nem parecia que havia acabado de ser derrotado na disputa para o governo de São Paulo, tamanho era o entusiasmo. A ex-presidente Dilma Rousseff, numa demonstração de prestígio, ganhou um “abraço especial”, além de ficar ao lado do futuro presidente. Lula, bem ao seu estilo, disse, entre outras coisas, que “quase foi enterrado vivo” por uma “avalanche de mentiras”. “Eu considero que estou vivendo uma ressurreição. Eles pensavam que tinham me matado, pensavam que tinham acabado com a minha vida política”, afirmou. Magnânimo, ressaltou que o resultado da eleição era uma construção coletiva que representava o triunfo da democracia e a derrota do autoritarismo. Nas palavras dele, o fato de um ex-retirante da seca ter ocupado a Presidência da República duas vezes e, aos 77 anos, ainda conquistar o terceiro mandato só podia ser obra de Deus. “Foi a eleição mais difícil da minha vida”, admitiu por fim. Não era só retórica.
Antes de se consagrar nas urnas como o 39º presidente eleito do Brasil, Lula precisou revisitar a história, se afastar de personagens inconvenientes, reconstruir a imagem e vencer resistências contra ele dentro do próprio PT. Driblar o passado foi o primeiro desafio. Há exatos vinte anos, a mesma euforia que se viu na Avenida Paulista concorria com os prognósticos do que seria um governo conduzido por um ex-metalúrgico que só completou o ensino fundamental, fez carreira no sindicalismo e projetou-se como um político radical. Havia ainda o espectro do PT. O partido pregava contra o capitalismo, apoiava invasões de terra e não escondia o apreço por ditaduras comunistas. Em 2002, para afastar todos esses fantasmas, Lula se comprometeu a defender a democracia, garantiu que respeitaria contratos e que não haveria ruptura dos fundamentos da política econômica em vigor. A remodelagem no discurso deu certo. O petista foi eleito, reeleito e deixou o governo, em 2010, com índices de aprovação que permitiram a ele considerar a hipótese de disputar uma terceira eleição num futuro que imaginava não muito distante.
Os dois primeiros mandatos do petista não foram marcados apenas pelo sucesso econômico ou pela criação de programas sociais como o Bolsa Família. O PT, desde a fundação, atuava como um contrapeso importante aos governos de turno. A defesa da ética na política era um dogma. Porém, logo no primeiro ano de governo, começaram a surgir casos que iam de encontro a tudo que o partido e dirigentes defendiam em público. O ministro da Casa Civil José Dirceu, por exemplo, além de braço direito de Lula, comandante e ideólogo do PT, também chefiava o mensalão, o maior esquema de desvio de dinheiro público descoberto até então. De candidato a sucessor de Lula no Planalto, acabou condenado e preso — destino semelhante ao do terceiro dirigente petista na linha sucessória, o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, que também acabaria preso por envolvimento num escândalo ainda maior, o petrolão. A corrupção foi aos poucos corroendo a imagem do PT e de seus líderes, até atingir o ápice com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a prisão do próprio Lula em 2018.
O petista teve sua morte política decretada diversas vezes — nos três fracassos seguidos antes de chegar à Presidência, na descoberta do mensalão e na condenação e prisão impostas pelo ex-juiz Sergio Moro. Retornar ao Planalto, depois de todos esses percalços, parecia uma missão impossível. Não era. Resiliente, Lula foi aos poucos desmontando um a um todos os obstáculos. O primeiro e mais importantes deles foi a revelação de que Sergio Moro e os procuradores encarregados da Lava-Jato atuaram em uma parceria que feria a lei. Numa reviravolta impressionante, o juiz foi considerado parcial e as condenações do ex-presidente foram anuladas. Em outra frente, apoiadores de Lula contrataram especialistas renomados, como o advogado australiano Geoffrey Robertson, uma das maiores autoridades do planeta na defesa dos direitos humanos. O caso de Lula foi levado a cortes internacionais, inclusive às Nações Unidas, como um exemplo de perseguição judicial. Para dar sustentação fática à tese, os petistas também encomendaram uma biografia de Lula ao historiador americano John French. O trabalho, publicado pouco antes da eleição, conta detalhes da carreira do petista, descrito como o “Pelé” da política brasileira e que classifica o impeachment de Dilma Rousseff como um golpe.
Depois de recuperar os direitos políticos, Lula entrou na corrida presidencial como líder das pesquisas de intenção de voto e, portanto, na condição de favorito. A impopularidade, as trapalhadas do governo e a imensa rejeição a Jair Bolsonaro impulsionaram o projeto do terceiro mandato. Em meados do ano passado, o ex-presidente começou a se reunir sigilosamente com políticos e empresários em busca do imprescindível arco de apoios para a disputa de 2022. No escritório do advogado Cristiano Zanin, em São Paulo, foram costurados apoios que resultaram na aliança com Geraldo Alckmin. A dobradinha dos antigos adversários era vista pelo entorno do petista como importante para acenar ao eleitorado mais conservador (manobra tão bem-sucedida que incluiu até uma declaração de voto de Fenando Henrique Cardoso a seu favor). No início de 2022, Lula reatou laços políticos com parlamentares que antes haviam apoiado a Lava-Jato, a exemplo do senador Randolfe Rodrigues (Rede), e também o impeachment de Dilma Rousseff, como o senador Renan Calheiros (MDB). Janja ficou incumbida de reconstruir a ponte da candidatura do marido com a classe artística — essa uma tarefa mais fácil.
Havia também pequenas rusgas que precisavam ser superadas dentro do próprio PT. Em meados de 2018, quando ainda estava preso, Lula buscava uma brecha jurídica que lhe permitisse disputar a Presidência. Foi quando soube através de um aliado que companheiros do partido estavam se articulando para lançar uma candidatura à revelia dele. Soube também que alguns dos mentores da ideia integravam um grupo que tentava convencê-lo a negociar com a Justiça a colocação de uma tornozeleira eletrônica em troca de uma prisão domiciliar. Um interlocutor do ex-presidente agora presidente eleito contou a VEJA que ele ficou magoado com o que parecia ser uma tentativa deliberada de impedir que ele disputasse a eleição daquele ano — suspeita, aliás, que ele compartilhou com pouquíssimas pessoas, mesmo depois de deixar a cadeia. O ex-presidente citou três nomes que estariam por trás dessa suposta conspirata: o governador da Bahia Rui Costa, o senador Jaques Wagner e o ex-prefeito Fernando Haddad, que, diante da impossibilidade de Lula concorrer, acabou sendo escolhido pelo PT para disputar a Presidência naquele ano. O episódio, de acordo com o interlocutor, foi totalmente superado. Aliás, Haddad e Costa estão cotados para cargos importantes na próxima gestão.
Antes do início da campanha, havia uma imensa dúvida sobre o peso que o tema corrupção teria nos embates. Lula, segundo pessoas próximas, tinha receio de ser hostilizado nas ruas e pavor de uma eventual ressurreição das denúncias. Pesquisas encomendadas pelo PT no início do ano, porém, revelaram que a economia era a principal preocupação dos eleitores. Nesse terreno, o petista era dono de um denso portfólio de realizações — temia apenas a memória negativa do governo Dilma, algo que Bolsonaro não soube explorar. No campo ético, os marqueteiros do partido estavam convencidos de que, como Jair Bolsonaro tinha seu próprio telhado de vidro, não seria interesse de nenhum dos dois lados mexer no vespeiro do concorrente. Não foi o que aconteceu. Boa parte da campanha foi pautada por acusações de lado a lado, o que acirrou ainda mais a polarização que já se anunciava, indicando que o futuro presidente da República seria definido nos detalhes. Apesar do esforço, Lula não conseguiu atrair para a sua coligação eleitoral antigos aliados, como o PDT, que lançou o ex-ministro Ciro Gomes na disputa. Havia também a esperança de que caciques do MDB minassem a candidatura de Simone Tebet e levassem a sigla a se juntar ao PT, como ocorreu em 2010 e 2014. Também não deu certo. Mesmo assim, com uma aliança formada por dez partidos, Lula conseguiu o maior tempo na propaganda eleitoral, um ativo que se mostrou valioso ao permitir a apresentação de algumas promessas e resposta aos ataques dos rivais.
Durante a campanha, os oponentes fizeram recrudescer o sentimento antipetista, que foi impulsionado principalmente por Ciro Gomes e Jair Bolsonaro. A estratégia abalou a campanha petista. A rejeição a Lula subiu devagarinho e superou a casa dos 40%, um pouco abaixo da de Bolsonaro, que foi caindo ao longo da disputa. Nas pesquisas, o medo da volta do ex-presidente chegou à reta final do segundo turno praticamente empatado com o medo da reeleição de Bolsonaro, o que não ocorria nos primeiros dias da campanha. Lula enfrentou ainda a desconfiança de setores específicos. Parcela importante do agronegócio aderiu a Bolsonaro, inundando a campanha do candidato à reeleição com doações financeiras. O apoio dos evangélicos ao capitão também foi crescendo gradativamente e se tornou tão preocupante para o PT que obrigou Lula a lançar uma carta voltada aos integrantes desse grupo.
No segundo turno, uma de suas principais dificuldades foi a falta de palanque em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, que reelegeram no primeiro turno governadores aliados a Bolsonaro. Lula conseguiu superar todas essas adversidades graças a uma combinação de fatores. Ele foi beneficiado diretamente pela imensa inabilidade de Bolsonaro, que, com jeitão tresloucado e à péssima condução do país durante a pandemia, perdeu votos no Sudeste que poderiam compensar o apoio do Nordeste a Lula. O petista também conseguiu convencer setores do eleitorado de que não faria um governo sectário, mas amplo, com a participação de políticos de esquerda, do centro e até da direita. Anunciou uma gestão moderada e de pacificação, o que soou como música a segmentos cansados da retórica autoritária do atual presidente. Ao contrário de 2018, quando tomou uma surra nas redes sociais, o PT também equilibrou a disputa nessa seara e recorreu a influenciadores para desconstruir Bolsonaro, impulsionar a popularidade digital de Lula e até para espalhar fake news. Deu certo. A vitória foi difícil e suada. Agora, é hora de arregaçar as mangas e trabalhar pelo Brasil.
Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814