Como ex-presidentes do Brasil enfrentaram grandes crises
Michel Temer foi o único deles a se pôr à disposição para ajudar Bolsonaro a enfrentar a pandemia de coronavírus
Uma pesquisa recente do Instituto Paraná, encomendada por VEJA e publicada em nosso site, mostra que a maioria dos brasileiros desconhece, dá pouca importância ou simplesmente ignora as opiniões daqueles que já ocuparam o posto mais importante da República. Não há muitos bons exemplos, é verdade. Mas se o “sucesso é um mau professor”, como costuma dizer o bilionário Bill Gates, as inúmeras dificuldades enfrentadas no passado por aqueles que já comandaram o destino do país poderiam ser úteis em momentos como o atual. Nos Estados Unidos, por exemplo, os presidentes seguem, de maneira geral, um padrão de comportamento ao deixar o cargo: dedicam-se a escrever livros e incentivam iniciativas filantrópicas. Em situações de crise, porém, deixam as questões partidárias de lado, a política miúda, e põem a experiência acumulada a serviço da nação. No Brasil, nunca se viu nada parecido. Nem mesmo a tragédia do coronavírus foi capaz de romper até agora esse isolamento. Os seis ex-presidentes vivos enfrentaram crises de diferentes matizes em seus respectivos governos. Uns se saíram muito bem. Outros, nem tanto. Mas todos eles sabem o tipo de erro que não deve ser cometido em certas situações.
Há duas semanas, o ex-presidente Michel Temer telefonou para Jair Bolsonaro, uma “ousadia saudável”, como ele próprio definiu. No dia da ligação, sábado 28, as panelas já ganhavam eco nas janelas, o país contabilizava mais de 100 mortos e, em um ato negacionista, o governo insistia numa campanha contra o confinamento da população. Contrários à medida, governadores, prefeitos e parlamentares elevavam o tom, apontando para uma crise política iminente. Ao ser atendido, o cerimonioso Temer pediu — e recebeu — autorização para dar um conselho a Bolsonaro. Ele então sugeriu ao presidente que decretasse um período nacional de isolamento de dez a quinze dias, permitindo a abertura de mercados e farmácias. No terreno político, alertou sobre a importância de manter o diálogo com os governadores. Bolsonaro se mostrou atento, agradeceu as dicas e deixou claro o nível de sua relação com os chefes estaduais — usando palavras cabeludas para referir-se a alguns deles.
Apesar de não ter sido ouvido, Temer sabe o que é administrar uma crise. Em seu governo, ele sobreviveu a três denúncias da Procuradoria-Geral da República, que incluíam acusações de crime de corrupção e lavagem de dinheiro, e a uma greve de caminhoneiros que deixou o país sem combustível, alimentos e remédios, e o presidente, à beira do cadafalso. “Depois de nove dias de greve, chamei o gabinete de crise e disse: ‘A gente precisa resolver esse assunto hoje. Se não for hoje, amanhã não tem governo. O povo vai sair para as ruas. E, quando o povo vai às ruas, o governo não aguenta, cai de vez’ ”, lembrou o ex-presidente. A solução só foi possível, ressaltou, porque ele se empenhou pessoalmente nas negociações, abriu os cofres da União para atender às demandas dos governadores e, com isso, ganhou musculatura política. Temer conta que, na época, demorou a perceber a gravidade do problema. “Muitas vezes, na Presidência, você não dimensiona por completo um determinado acontecimento — e sua convicção nem sempre vai prevalecer. Mas é como Juscelino Kubitschek dizia: ‘Eu não tenho compromisso com o erro’.” Recuar, segundo ele, é permitido — e, sobretudo, louvável.
A democracia brasileira enfrenta tempestades desde seu renascimento. Trinta anos depois de deixar o Palácio do Planalto, José Sarney talvez tenha sido o governante que mais administrou crises. Com a morte de Tancredo Neves, ele assumiu a Presidência sem ter indicado os ministros, sem ter tido ingerência alguma no plano de governo, tampouco o apoio de partidos. A missão principal do emedebista não era nada simples: tirar o país do retrocesso. “Eu poderia cair a qualquer momento. Mas não reagi, não demiti ministros e evitei sempre a violência. O presidente tem como função principal dialogar e harmonizar os conflitos”, relata. Sarney enfrentou mais de 12 000 greves em seu mandato, foi vítima de atentado e, certa vez, um sequestrador tentou jogar um Boeing sobre o palácio. Apesar das turbulências, manteve o diálogo com o Congresso, as Forças Armadas e a oposição. “Na história do Brasil, muitos presidentes foram eleitos para ser depostos — e eu não podia ser mais um”, afirma.
A profecia valeu para o sucessor de Sarney. Fernando Collor assumiu o país com a inflação acima de 80% ao mês. Nos primeiros dias, anunciou um pacote de medidas que incluía o congelamento de preços e o confisco das cadernetas de poupança — aliás, até hoje ele se recusa a chamar o confisco de confisco. Foi um pandemônio, mas ele atravessou a crise. “Eu tinha apoio popular”, diz. Para garantir apoio também no Congresso, o ex-presidente lembra ter feito “mutirões de conversas com deputados e senadores”. Dois anos depois, fragilizado por denúncias de corrupção e sem base política, sofreu um processo de impeachment. Passados 28 anos, ele avalia que Bolsonaro vive uma crise institucional com os poderes Legislativo e Judiciário. O horizonte do atual presidente, por isso, não é favorável. “Falta humildade para perceber que ele cometeu um equívoco na condução da crise do coronavírus. Temos 76% da população dizendo que quer uma coisa, e o presidente aparece isolado não só no Brasil, mas no mundo. Não vejo como isso possa dar certo”, vaticina.
Com o impeachment de Collor, o vice Itamar Franco, que morreu em 2011, concluiu o mandato. O sucessor dele, Fernando Henrique Cardoso, estava no comando do país quando houve um colapso no sistema energético, em 2001 — o famoso “apagão”. “Foi triste ver as luzes das cidades se apagando, inclusive em Brasília e no próprio Alvorada”, lembra. O ex-presidente recorda que, no início, menosprezou a crise, diante da convicção de que era uma coisa passageira. Ao tomar pé do problema, buscou unir forças. A receita foi a mesma. “Chamei os líderes do Congresso, inclusive os da oposição. Falei com governadores, com os sindicalistas e com os empresários que pude. Apelamos à população para que fizesse um racionamento”, conta. “Pedi apoio à população, sem medo de perda de prestígio. Ninguém tira proveito de grandes encrencas”, alerta.
Mas tem ex-presidente que tenta. Condenado a 26 anos de cadeia por corrupção e lavagem de dinheiro, Lula passou 580 dias preso. Até a Lava-Jato, ele havia demonstrado uma extrema mestria para escapar de situações difíceis. Na crise do coronavírus, farejou uma oportunidade. Nos últimos dias, o ex-presidiário, de 74 anos, dedicou-se a dar entrevistas para criticar o governo e se aproximou de velhos adversários por puro oportunismo. A sucessora dele, Dilma Rousseff, 72 anos, trilhou o mesmo caminho. Ela, que também sofreu um processo de impeachment, chamou Bolsonaro de “louco” e “irresponsável” e, sem se lembrar de seu péssimo desempenho, classificou a política econômica do governo de “deplorável”. À esquerda ou à direita, os radicalismos não costumam mesmo ter grandeza.
Com uma taxa de letalidade em torno de 5% no Brasil, o coronavírus reuniu todos os ex-presidentes no chamado grupo de risco. Aos 88 anos, FHC não encontra mais seus filhos, netos e bisnetos. Sai de casa apenas para algumas caminhadas com a mulher e não dispensa o uso da máscara. Com 70 anos, Collor é o único que tem mandato. Ele participa das sessões remotas do Senado desde a Casa da Dinda, onde mora até hoje, e, por precaução, fez o exame do coronavírus (testou negativo). Temer, aos 79 anos, tem aproveitado para revisar o livro que lançará sobre seu governo. Já Sarney, que mantém intenso o hábito da leitura, teve cancelada sua festa de 90 anos, que seria realizada no próximo dia 24. “Muitas vezes na minha vida eu ouvi falar que o mundo ia acabar. Mas nunca tinha visto que quem ia acabar não era o mundo, e sim a espécie humana”, exagera.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682