Como a equipe de Haddad estuda regularizar o setor de apostas esportivas
Ministro da Fazenda deu um prazo de até o fim de março para que uma medida provisória seja editada e comece a colocar ordem na situação
Com um celular na mão, um palpite na cabeça e um dinheiro na conta, qualquer pessoa hoje no Brasil consegue fazer uma aposta esportiva on-line. Do tradicional futebol (incluindo feminino, divisões menores e torneios juvenis do mundo todo) ao jogo de dardos, passando por tênis de mesa, badminton e até os e-sports, entre outras dezenas de modalidades, o segmento movimenta bilhões de reais no país, mas nenhum centavo de impostos chega aos cofres públicos. Existe um desejo antigo das empresas sérias do setor em regulamentar o negócio, o que inclui arcar com os compromissos fiscais, algo naturalmente visto com bons olhos há tempos pelo governo federal, dentro de seu permanente sufoco diante do caixa apertado. Mesmo assim, a bola ficou parada no meio do campo por muito tempo.
Agora, finalmente, o jogo legal está prestes a começar. Autorizada por força de uma lei em dezembro de 2018, no final da gestão de Michel Temer, a chamada aposta por cota fixa passou os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro rodando em círculos no campo das negociações à espera das regras e normas que balizassem o setor. Sob novo comando, o Ministério da Fazenda abraçou a ideia da regulamentação e seu ministro, Fernando Haddad, deu um prazo de até o fim de março para que uma medida provisória seja editada e comece a colocar ordem na situação.
Nas últimas semanas, o time de Haddad vem se debruçando sobre o arcabouço da MP e das sucessivas portarias que serão emitidas enquanto a norma principal tramitar no Congresso Nacional. O modelo definido será o de outorga, ou seja, quem quiser operar no Brasil deverá pagar uma taxa, por volta de 30 milhões de reais (ante 22 milhões de reais aventado pelo governo Bolsonaro), válida a princípio por cinco anos, mas podendo ser maior, com majoração do pagamento inicial. “O valor da outorga não é problema para quem quer trabalhar. Mas o mercado pede pelo menos dez anos de prazo”, afirma André Feldman, presidente da recém-criada Associação Nacional de Jogos e Loterias. A Fazenda também estuda a forma de tributação. Enquanto as empresas de apostas estarão sujeitas à taxação convencional, de acordo com o faturamento, os apostadores também deverão recolher tributos. A alíquota ainda não está fechada, mas vai variar entre 10% e 20% do prêmio, sem nenhuma faixa de isenção.
Com a determinação de pagamento da outorga e de algumas obrigatoriedades, como capital mínimo e a necessidade de representações físicas e fixas no país, a expectativa do governo é que entre setenta e 100 empresas permaneçam no mercado nacional, número que equivale, no máximo, a 10% dos sites de apostas que atuam por aqui, a maior parte com endereços fora do país e muitas em paraísos fiscais. Uma dessas é a Galera Bet, sediada em Curaçao, no Caribe. Sem nenhuma sala de escritório no país, a empresa desembarcou há pouco mais de um ano e possui mais de 2,5 milhões de usuários cadastrados em sua plataforma. “Aqui no Brasil atuamos sob um limbo jurídico, com constante preocupação de questões tributárias e legais, e optamos por operar onde temos segurança jurídica”, afirma Marcos Sabiá, CEO da empresa, que estampa suas marcas no Campeonato Brasileiro e nos jogos da Confederação Brasileira de Basquete. “Quando houver a regulamentação, nossa empresa terá representante legal e estrutura no país.”
Já está mais do que na hora de regulamentar um negócio que vem se expandindo de forma exponencial. Em 2018, o faturamento do setor foi de cerca de 2 bilhões de reais. Quatro anos depois, pulou para 15 bilhões de reais e as projeções sempre apontam para cima (veja mais números no quadro). O que também aumentou foram as cotas de patrocínios. Em 2021, o Flamengo fechou um contrato de exposição da marca da Pixbet na parte de cima de sua camisa por 24 milhões de reais por ano. No São Paulo, a Sportsbet.io desembolsa 29 milhões de reais anuais pela cota master de propaganda no uniforme.
Na elaboração da medida provisória necessária para colocar ordem no jogo, a equipe de Haddad tem se espelhado em exemplos de outras nações que estão mais avançados no tema. Países como Dinamarca e Suécia inspiram o Brasil em uma regulamentação que não gere monopólio, mas que impeça a entrada de companhias sem fôlego financeiro para arcar com todos os custos do negócio. O governo ainda vai receber dos Estados Unidos ajuda em tecnologia para resolver questões de geolocalização dos apostadores, de forma a coibir entrada de operadores piratas e combater fraudes em apostas estaduais (cada estado também poderá operar no mercado on-line).
A fiscalização do negócio segue sendo um desafio aqui e lá fora. Para o sistema funcionar a contento, é importante “combinar com os russos”, fechando cada vez mais o cerco contra as fraudes. Apesar dos esforços já feitos pelas autoridades, a multiplicação de casos cresce quase na mesma proporção do bolo das apostas. Um dos casos mais famosos no exterior envolveu a tenista russa Yana Sizikova. Em 2021, ela foi presa em Paris sob a acusação de perder de propósito um jogo no torneiro de Roland Garros. Quinze anos antes, a Juventus, da Itália, acabou sendo rebaixada após a descoberta de um esquema de manipulação de resultados. No Brasil, em 2005, a “máfia do apito”, revelada por VEJA e pelo jornalista André Rizek, levou para a cadeia o ex-árbitro Edílson Pereira de Carvalho. Nos anos 80, ficou célebre a denúncia da revista PLACAR a respeito de mutretas ocorridas em jogos do campeonato nacional escalados para a antiga loteca. Deu zebra, como se dizia antigamente.
Atualmente, a Polícia Civil paulista investiga doze casos de suspeitas de tentativas de fraudes, todos em jogos de divisões menores. Em Goiás, o Ministério Público também apura irregularidades em três partidas da Série B do Brasileirão de 2022. Esses episódios levaram o deputado federal Felipe Carreras (PSB-PB) a propor a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o assunto. “Não podemos ficar assistindo e não fazer nada”, justifica ele. A ideia, no entanto, encontra resistência na ala econômica do governo, que não quer o barulho político de uma CPI justamente agora, às vésperas do esforço final para a legalização do setor de apostas on-line. Além disso, com empresas devidamente regulamentadas por aqui, a fiscalização do setor tende a ser muito mais efetiva, incluindo as reais chances de punição. Não custa nada mesmo o país apostar no bom senso.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832