Como a devastação das queimadas atinge a imagem de Lula e do governo
Gestão não tinha política de prevenção, plano de contingência nem orçamento para enfrentar o problema
É conhecida a distância que separa o discurso dos governantes da realidade. Em seu terceiro mandato na Presidência da República, Lula não foge à regra. O presidente insiste na fantasiosa ideia de que o Brasil é um protagonista global enquanto o país, sob sua gestão, vê contestada até a sua histórica posição de líder regional. Lula também festeja um crescimento de 3% ao ano como sinal de que o governo está no caminho certo, mas mesmo integrantes do Ministério da Fazenda alegam que a expansão do PIB terá sempre um teto baixo, o famoso voo de galinha, enquanto a responsabilidade fiscal não for levada a sério. Na área ambiental, a situação não é diferente. Em reunião com representantes dos Três Poderes para tratar da seca e dos incêndios, o presidente até admitiu que “a gente não estava 100% preparado” para lidar com a situação, mas preferiu reforçar a suspeita de que há uma atuação coordenada de criminosos para desgastar a sua administração, que teria uma “performance” ambiental reconhecida e elogiada no mundo inteiro. A cortina de fumaça também é da essência da política, assim como a arte de terceirizar responsabilidades.
Com o agravamento das queimadas, a Polícia Federal e as polícias estaduais passaram a dedicar mais atenção a investigações sobre a possibilidade de atos criminosos estarem por trás de incêndios, que já queimaram neste ano 234 000 quilômetros quadrados na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, área que supera a soma dos territórios de Portugal, Holanda e Bélgica. A apuração pela polícia é necessária, mas não pode desviar o foco de uma questão central: a falta de prevenção e de ações contundentes do poder público, que deixam claro que a prioridade ao meio ambiente só existe nos pronunciamentos oficiais. Diante da cúpula do Judiciário e do Legislativo, Lula situou os desastres climáticos como uma realidade mundial, declarou que a natureza resolveu colocar as garras de fora em reação à degradação provocada pela mão humana e, logo em seguida, apontou para a existência de uma “anormalidade”, que teria ares de conspiração. “Algo me cheira oportunismo também de alguns setores tentando criar confusão neste país. O que queremos é autorização para fazer as investigações, porque, se as pessoas estiverem cometendo esse tipo de crime, a lei tem que ser exercida na sua plenitude”, afirmou.
Repetindo roteiro adotado no caso das enchentes no Rio Grande do Sul, o presidente sobrevoou áreas atingidas pelo fogo na Amazônia e no Parque Nacional de Brasília. Foi uma forma de demonstrar preocupação com o tema e tentar conter danos de imagem. Segundo a mais recente pesquisa do Ipec, a avaliação do governo Lula continua estável, com 35% de “ótimo e bom” e 34% de “ruim e péssimo”. Uma análise setor por setor revela que a desaprovação registrou o maior salto justamente no quesito meio ambiente. O total de “ruim e péssimo”, que era de 33% em abril, passou para 44%, puxado principalmente pelos entrevistados das regiões Norte e Centro-Oeste, onde estão localizados a Amazônia e o Pantanal. Diante do desgaste, o presidente anunciou a liberação de pouco mais de 500 milhões de reais para o combate às queimadas e medidas destinadas a simplificar a liberação de recursos do chamado Fundo Amazônia, que recebe doações internacionais. A ordem é fazer o possível para apagar o incêndio — literal e metaforicamente.
Convidada a reassumir o Ministério do Meio Ambiente como prova do compromisso da gestão Lula com a área, Marina Silva ecoou o discurso do chefe de que há “terrorismo climático” no Brasil e reclamou na reunião da combinação entre secas extremas e “pessoas ateando fogo no futuro do país”. Em rápida manifestação, elogiou o presidente, afirmando que ele recompôs o orçamento e uma série de atribuições da pasta. Marina ainda deu uma estocada no antecessor de Lula: “Não consigo imaginar o que seria de nós se tivéssemos ainda numa situação de completo desmonte da agenda ambiental brasileira”. Jair Bolsonaro, o sujeito oculto dessa declaração, também abordou o tema, mas para registrar que, se ainda fosse o mandatário, não seria tratado com tamanha benevolência. “Quando é pela manutenção da democracia relativa, todo o sistema finge normalidade. Vamos culpar o Bozo e segue tudo inabalavelmente inabalável”, postou numa rede social. Deixando de lado a fumaça do embate político, Marina ressaltou com cuidado o que o governo ainda não fez e, aproveitando a oportunidade, pregou o que deve ser feito — de preferência, rapidamente.
Sob o olhar de Lula, a ministra defendeu a implantação de um plano de prevenção e combate a eventos climáticos severos, que está parado na Casa Civil. Se adotado, poderia ter, segundo ela, o mesmo efeito do plano de combate ao desmatamento, que teria reduzido esse indicador pela metade entre 2022 e 2023. Marina também mencionou a criação da Autoridade Climática, que funcionaria de forma autônoma e perseguiria objetivos específicos, como ocorre com o Banco Central. Na última campanha presidencial, Lula prometeu implantar a Autoridade Climática, mas a ideia foi abandonada porque nichos da burocracia não querem perder poder e também por enfrentar a resistência de setores do agronegócio influentes no Congresso. A seca e os incêndios, de certa forma, ajudaram Marina a retomar a pressão sobre o chefe e seus adversários internos na gestão petista. A ministra tem muito prestígio fora do Palácio do Planalto, mas na equipe de Lula exerce na prática um papel de coadjuvante e chega a ser vista como um empecilho a projetos de desenvolvimento, como a exploração de petróleo na foz do Amazonas, defendida pelo presidente e pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.
Como as autoridades públicas em geral têm dificuldade para admitir erros, um dos pontos centrais da reunião foi a necessidade de punir quem comete crime contra o meio ambiente. Uma das propostas é aumentar as penas previstas em lei. Em resposta, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), recomendou que se evitasse “populismo” e afirmou que o problema, neste momento, não é legislativo. Bastaria cumprir a lei em vigor. Parece banal, mas não é. Em recente entrevista às Páginas Amarelas de VEJA, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Herman Benjamin, ressaltou que o crime ambiental compensa no Brasil, porque há sempre a perspectiva de anistia e porque o governo não toma atitudes que poderiam coibir os criminosos, como a suspensão de benefícios fiscais ou de empréstimos camaradas a pessoas físicas e empresas que desmatam ou tacam fogo nos diferentes biomas. “É um Estado teatral”, definiu Benjamin. “O Judiciário é muito lento nas questões ambientais. O desmatamento merece a mesma rapidez que hoje atribuímos a áreas como a violência doméstica”, acrescentou, sobre a parte que lhe cabe.
Há outro ponto crucial a ser considerado. Qualquer iniciativa legislativa nessa seara tende a enfrentar resistência pesada na Câmara, onde os deputados têm demonstrado mais inclinação para atenuar do que para tornar rigorosa a legislação ambiental. O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), destacou que qualquer proposta precisa ser muito bem explicada para não ser interditada pelo debate ideológico e pela polarização. Ou seja: quase tudo concorre para a letargia na Praça dos Três Poderes. Atropelado pela crise ambiental, o governo não tinha nem plano de contingência nem recursos para reagir. Em meio a esse vácuo administrativo e à apatia de Executivo e Legislativo, o Supremo Tribunal Federal (STF) entrou em campo. Indicado ao STF por Lula, o ministro Flávio Dino determinou a convocação de mais bombeiros para combater os incêndios e deu um prazo de noventa dias para que o Planalto apresente um plano nacional de enfrentamento às queimadas para 2025. É melhor prevenir do que remediar, ensina a sabedoria popular tão negligenciada pelas autoridades.
Com a situação cada vez mais fora de controle, Dino também autorizou que os recursos liberados para debelar o fogo não sejam computados no cálculo da meta fiscal. Seguiu, assim, um entendimento firmado há meses pelo plenário do tribunal. “Não podemos negar o máximo e efetivo socorro a mais da metade do nosso território, suas respectivas populações e toda a flora e fauna da Amazônia e Pantanal, sob a justificativa de cumprimento de uma regra contábil não constante na Carta Magna, e sim do universo infraconstitucional.” As decisões foram tomadas em uma ação protocolada pela Rede, partido da ministra Marina Silva, e fizeram a equipe de Lula finalmente se mexer. A VEJA, uma das principais autoridades envolvidas no caso, que pediu para não ser identificada, disse que o Ministério do Meio Ambiente até tem ideias, mas enfrenta uma dificuldade monumental para executá-las. Já os parlamentares estariam mais preocupados com seus interesses específicos, de emendas à sucessão no comando da Câmara.
Horas antes da reunião com representantes dos Três Poderes, o presidente participou de uma solenidade voltada para pequenos exportadores. Na ocasião, recomendou aos auxiliares que sempre falem com entusiasmo, porque só assim convencerão a sociedade da seriedade e das chances de sucesso de suas iniciativas. Para dar uma estocada bem-humorada no ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Lula comparou a atuação do auxiliar à do vice-presidente, Geraldo Alckmin, conhecido pelo comedimento e o estilo sensaborão. “Toda a vez que o Haddad vai falar, eu falo: ‘Haddad, você tem que passar entusiasmo’. Até o Alckmin passou entusiasmo hoje. Até o Alckmin”, destacou o presidente. É uma boa dica, mas não resolve nada. Qualquer governo vive de apagar incêndios quando o entusiasmo dos discursos não é acompanhado de ações eficazes e previamente planejadas.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911