Acossado pela pandemia de Covid-19, a crise econômica e a queda de popularidade, o presidente Jair Bolsonaro terá de arbitrar uma disputa entre dois dos principais pilares de seu governo: o ministro Paulo Guedes, avalista da agenda liberal, e o chamado centrão, que forma o grosso da base aliada no Congresso. O motivo da discórdia é o Orçamento da União deste ano, que tem de ser sancionado até o próximo dia 22. Chefe da equipe econômica, Guedes diz que a lei orçamentária aprovada pelos congressistas é “inexequível” porque subestimou despesas obrigatórias — com a Previdência, por exemplo — a fim de abrir espaço para o aumento das emendas parlamentares. Já o centrão alega, com o respaldo das cúpulas da Câmara e do Senado, que o governo participou diretamente das negociações sobre o mérito do texto e também do acordo que permitiu a sua votação. Por isso, a queixa de Guedes seria, segundo a classe política, algo entre falta de palavra, quebra de confiança e traição.
Bolsonaro conhece muito bem os detalhes desse embate. Deputado de baixo clero por quase 30 anos, ele terá de decidir se cortará parte das emendas parlamentares, como defende o ministro, e principalmente o tamanho da tesourada. O cálculo ainda está sendo feito e, apesar de ter como pano de fundo as contas públicas, é essencialmente um cálculo político. O objetivo do presidente ao desatar o nó do Orçamento é adotar uma solução intermediária, negociada, que não desagrade nem a Guedes nem ao centrão a ponto de levar um ou outro a romper com o governo. O excesso de zelo é compreensível. Bolsonaro sabe que só terá chances de aprovar projetos e impedir a abertura de um processo de impeachment enquanto contar com o apoio do centrão. Sabe também que esse grupo pode ser a sua principal tropa de defesa na recém-criada CPI da Covid do Senado, que apurará ações e omissões do governo no combate à pandemia.
Vitorioso nas últimas eleições municipais e forte nos municípios de pequeno e médio portes, o centrão também é considerado estratégico para a próxima sucessão presidencial. Bolsonaro quer que os partidos desse grupo, como PP, Republicanos e PL, apoiem a sua reeleição. Por isso, tem distribuído a eles ministérios e cargos de segundo e terceiros escalões. O rateio não é capaz de saciar completamente o apetite dos aliados. Ciente de seu valor de mercado, o centrão volta e meia cobra mais espaço na máquina pública. Seus líderes nunca abandonaram, por exemplo, a pressão pelo desmembramento do Ministério da Economia em duas ou três pastas, como Planejamento e Indústria e Comércio. Até aqui, Bolsonaro resistiu a essa ofensiva e manteve intactos os domínios de Guedes, cuja continuidade no cargo também é importante para o futuro político do chefe.
Empossado com status de superministro, Guedes até conseguiu aprovar alguns pontos de sua agenda liberal, como a reforma da Previdência, mas com o decorrer do tempo teve seu poder esvaziado. O próprio presidente segurou o quanto pode o envio da reforma administrativa ao Congresso e nunca se esforçou de fato pelas privatizações. A base governista também aprova aumento de gastos com frequência, como ocorreu ao turbinar as emendas parlamentares no Orçamento deste ano, mesmo diante dos apelos em sentido contrário feitos pelo ministro. Bolsonaro insiste em segurar Guedes em seu time, apesar do coro cada vez maior por mais gastos, porque só o ministro e a equipe dele defendem as reformas estruturantes e o equilíbrio das contas públicas. Se Guedes sair, há risco de o presidente perder de vez o apoio daqueles que ainda acreditam — ou dizem acreditar — em seu compromisso com a agenda liberal.
Lidando com tantos fatores externos de pressão, Bolsonaro faz o que pode para evitar rachas internos em seu governo. Entre o centrão e Guedes, a escolha do presidente é clara: ele quer ficar com ambos. Se vai conseguir, e a que custo, ficará claro nos próximos dias.