O matador de aluguel Ronnie Lessa já estava preso por envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco quando um aspirante a delator bateu às portas do Ministério Público do Rio de Janeiro com a proposta de escrutinar o submundo do crime no estado. Recebido pelas promotoras Simone Sibilio e Letícia Emile, que na época integravam a força-tarefa do caso Marielle, o delator prestava depoimentos que poderiam levá-lo a usufruir de potenciais benefícios judiciais quando mencionou o nome de Rogério de Andrade.
Patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel e sobrinho do lendário Castor de Andrade, Rogério é o bicheiro mais temido do Rio e apontado pelo MP como responsável por homicídios, corrupção, lavagem de dinheiro e exploração ilegal de máquinas caça-níquel. O delator não deu maiores detalhes, mas afirmou que o contraventor estava envolvido na morte da vereadora.
Como se sabe, Ronnie Lessa confessou ter sido o autor dos disparos que mataram a parlamentar e o motorista dela, Anderson Gomes, em março de 2018, e apontou o deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ) e o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Domingos Brazão como mandantes do homicídio.
Já era de conhecimento de investigadores do Rio que Lessa e Rogério de Andrade eram parceiros em negócios criminosos e, conforme revelou O Globo, o acordo de colaboração do ex-policial militar tem anexos sobre a atuação do contraventor. Aquele caso, no entanto, provocou desdobramentos pouco usuais.
Delação mencionou Rogério de Andrade no caso Marielle
Com o avanço das negociações com o homem que havia prometido uma radiografia criminal do Rio, a delação foi oficializada pelo Ministério Público, mas tanto nos anexos quanto na redução a termo das revelações do criminoso confesso, o nome de Rogério de Andrade simplesmente desapareceu. A interlocutores, as duas promotoras alegaram que não havia elementos de corroboração para manter a acusação contra o bicheiro e decidiram descartar a menção a ele no acordo. Encerrado o assunto, o caso ficou adormecido.
Guardada em um gabinete do Ministério Público estadual, a íntegra dos depoimentos do colaborador, gravada em áudio, foi descoberta quando um novo time escalado para tentar desvendar o assassinato de Marielle assumiu os trabalhos. Estava instalada uma verdadeira guerra de bastidores do MP.
A briga entre membros do Ministério Público
A equipe do promotor Bruno Gangoni entrou com duas representações – uma criminal e uma disciplinar – contra Simone Sibilio e Letícia Emile por supostamente terem ignorado a citação a Rogério de Andrade naquela delação. Os casos terminaram arquivados sob o argumento de que as duas tinham autonomia para decidir o que era relevante e o que não era em determinada investigação. Tempos depois, as promotoras pediram a rescisão da delação, naquele momento já homologada pela justiça, para sanear parte das provas colhidas no processo.
Fontes do MP atribuem a atitude do promotor que assumiu o caso Marielle a uma espécie de seguro para protegê-lo na hipótese de, no futuro, se descobrir que Rogério de Andrade de fato tinha envolvimento no crime e ele não acabar acusado de blindar o bicheiro.
Em maio de 2022, já com a apuração do homicídio sob o comando de Bruno Gangoni, o MP admitiu pela primeira vez que uma das linhas de investigação para desvendar o crime passava pelo nome do sobrinho de Castor de Andrade. “Há várias linhas sendo investigadas. Essa [de envolvimento de Rogério de Andrade] é uma delas”, disse na ocasião o promotor do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) Diogo Erthal.
Já com as duas representações arquivadas, Simone Sibilio e Letícia Emile viraram o jogo e procuraram o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em Brasília, para pedir que o colegiado apurasse a conduta da equipe de Gangoni que, mesmo por linhas tortas, havia acusado as duas de ter motivos pouco republicanos ao retirar o nome de Rogério de Andrade da delação. O promotor deixou o caso tempos depois. No apagar das luzes de 2023, o então corregedor Oswaldo d’Albuquerque propôs transformar a acusação em um procedimento administrativo disciplinar (PAD) sigiloso contra Gangoni e outros sete membros do MP fluminense.