Na segunda 14, a cachorrinha Resistência era a estrela de um concorrido evento do Dia Nacional dos Animais em um palco inusitado: a Fundação Perseu Abramo, uma espécie de think tank dedicado a traçar as diretrizes programáticas do PT. Além do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lá estavam boa parte da cúpula do partido, ONGs e celebridades ligadas à causa, como a atriz Luisa Mell e a apresentadora Bela Gil. Resistência não chegou ali à toa. Foi trazida de Curitiba pela socióloga Rosangela da Silva, 55 anos, que a adotara no acampamento em frente à Polícia Federal de onde militantes pediam a liberdade do ex-presidente, preso pela Lava-Jato. Janja, como é conhecida a noiva de Lula, é bem mais do que isso: é a responsável por incutir na cabeça do companheiro bandeiras que eram laterais na sua agenda. O encontro, por exemplo, discutiu a inclusão da causa animal no programa que o petista defenderá na eleição, uma preocupação que nem existia na sigla até 2021, quando foi criada uma setorial para cuidar do assunto. E Resistência, agora a cachorra do casal, virou a mascote oficial do movimento.
Não foi o primeiro evento em que o toque feminino da noiva de Lula ganhou evidência. Janja idealizou o encontro do petista com Bela Gil e a chef Bel Coelho, no Camélia Òdòdó, o badalado restaurante da filha de Gilberto Gil na Vila Madalena, em São Paulo, no fim de fevereiro, para um debate sobre alimentação saudável. Janja soube por Bela que ativistas queriam conhecer Lula e tratou de convencer o companheiro a ir. “Chamei amigos e amigas de profissão, chefs de cozinha, nutricionistas, sociólogos. E Janja colocou alguns nomes”, lembra Bela. O tema já vinha sendo trabalhado pela noiva. Dias antes, Lula fizera uma postagem nas redes sociais dizendo ter “melhorado o discurso”. “Não falo só do pessoal voltar a comer churrasco, mas também o pessoal vegetariano, que não come carne, poder comer uma boa salada orgânica”, escreveu. Na semana passada, o roteiro foi parecido. Janja conversou com Lula sobre temas como adoção e castração. Contente com o que ouviu, Luisa Mell, que tem mais de 4 milhões de seguidores no Instagram, postou uma foto sorridente com Lula e uma legenda elogiosa ao petista. “Ficou bem evidente que a Janja está influenciando realmente o presidente para essas pautas tão importantes e que ele não conhecia. E que bom”, diz a ativista.
A mudança agrada ao petismo. O ex-líder sindical, que ainda vocaliza vários radicalismos ligados à agenda econômica do PT, atualizou seu discurso para incluir assuntos que mobilizam um universo diferente nas redes. Tal transformação tem sido motivada por Janja, com quem ele vai se casar ainda antes da eleição. Muito mais do que posar como uma candidata à primeira-dama “clássica” (o que também faz), ela vem mostrando ter um protagonismo próprio, ao ser capaz de não só de direcionar a campanha para temas com apelo atual, mas também ao articular pontes com públicos com os quais Lula não tinha contato.
O círculo de amigos mais próximos ao casal diz que a postura é inerente a sua personalidade, moldada por uma vida de militância política. Rosangela da Silva nasceu em União da Vitória, cidade de 58 000 habitantes na divisa do Paraná com Santa Catarina, mas se mudou para Curitiba ainda pequena. Lá, interessou-se pelas causas da esquerda e filiou-se ao PT aos 17, quando o partido tinha três anos de idade. Formada e pós-graduada na Universidade Federal do Paraná, trabalhou em uma empresa de engenharia da Usina Hidrelétrica de Barra Grande antes de ser indicada em 2003, na gestão petista, a um cargo na Itaipu Binacional, onde fez carreira desenvolvendo projetos ligados ao desenvolvimento sustentável e à inclusão social. Ela se aposentou na empresa em 2020, mas passou sete anos no Rio de Janeiro cedida à Eletrobras, onde atuou na área de comunicação social.
O relacionamento dela com Lula começou no pior momento do petista. Janja não tem filhos e já foi casada, mas estava sozinha havia cerca de dez anos quando, em 2018, o ex-presidente foi levado a Curitiba. Com amigos, passou a frequentar o acampamento montado por petistas ao lado da PF, de onde Lula ouvia os gritos por sua liberdade. Ela já havia sido apresentada ao ex-presidente em outros momentos e conhecia a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, por causa da militância no Paraná e do trabalho em Itaipu. Por isso conseguiu ser incluída na lista de mais de 500 pessoas que estiveram com o petista no cárcere. “Ela era uma fã dele”, resume um amigo. Ali, segundo as pessoas próximas ao casal, teriam começado a se envolver e selaram o compromisso amoroso numa visita ocorrida em 12 de junho de 2019, Dia dos Namorados. Um começo de relacionamento bastante inocente, diga-se, devido às circunstâncias. Lula não tinha direito a visita íntima e chegou a brincar que, desta vez, ia “casar virgem”.
Quando o ex-presidente foi solto, e Janja apareceu para o público, ele passou a frequentar com ela a casa de amigos em São Paulo como o ex-prefeito Fernando Haddad, o advogado Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas, e o deputado Emidio de Souza, uma vez que Janja ficara amiga dos três dirigentes e suas mulheres na nova cidade. As rodas de amizade foram se ampliando e Janja foi deixando boas impressões tanto pela forma com que cuida do ex-presidente quanto pela disposição de “doutrinar” o companheiro nos temas com os quais sempre conviveu.
Exemplo disso é o cuidado com que ela o alerta para falas politicamente incorretas. Lula já foi flagrado fazendo piadas homofóbicas com gaúchos. Segundo uma amiga do casal, hoje isso não aconteceria. “O Lula, agora, é o cara que se preocupa em ter um prato vegetariano ou vegano se a visita não come carne”, diz uma amiga do casal. Entre os dirigentes, a nova companheira é vista como um achado. “A Janja deve ser encarada como um ativo do campo progressista e do PT em especial. Ela é muito sensível e qualificada”, afirma Carvalho, que vê nela um “compromisso sincero” com pautas de direitos humanos, erradicação da fome e miséria. Os mais encantados vão além. “Ela só ficará satisfeita se deixar um legado. Vai ser protagonista, de Michelle Obama para mais”, exagera Bela Gil.
Janja acompanha Lula em suas viagens pelo país e pelo exterior e faz as vezes da companheira discreta, que posa para os retratos ao lado do companheiro se a ocasião recomenda, mas também é a militante que vai sozinha, caminhando na rua, a eventos como a marcha pelo Dia Internacional da Mulher na Avenida Paulista, em São Paulo, no dia 8. Nesse caso, ao ser reconhecida, ouviu cobranças sobre a ausência do marido. Já no encontro sobre a data organizado pelo PT no dia seguinte, ela foi recebida sob aplausos pelo público (só de mulheres) e a primeira a discursar, antecedendo ativistas e dirigentes. Lula sinalizou uma reforma política para garantir 50% das vagas no Legislativo a mulheres.
O perfil de Janja contrasta com o da ex-primeira-dama Marisa Letícia, que morreu em fevereiro de 2017 em decorrência de um AVC. Casada com Lula desde 1974, ela conheceu o marido no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e também teve uma atuação política. Liderou uma passeata de mulheres contra a prisão de Lula na ditadura e ajudou a organizar movimentos feministas. Mas durante as campanhas políticas e sua passagem pela Presidência, Marisa optou pela discrição. Janja, por sua vez, parece disposta a não abrir mão do protagonismo conquistado e continuará tendo um papel importante na tentativa do petista de voltar ao Palácio do Planalto. Segundo o entorno do ex-presidente, ela representa hoje um canal importante para conquistar votos femininos, justamente o ponto mais fraco do rival Jair Bolsonaro. Nesse sentido, os noivos ensaiam um casamento político perfeito.
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781