O domingo, 8 de janeiro de 2023, foi uma das jornadas mais tristes da história do Brasil. As cenas das hordas terroristas formadas por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro na invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, são vergonhosamente indeléveis. Aos olhos do mundo, provocaram espanto e incredulidade. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, considerou os ataques “ultrajantes”. O chefe de Estado francês, Emmanuel Macron, foi direto ao ponto: “A vontade do povo brasileiro e as instituições democráticas devem ser respeitadas. O presidente Lula pode contar com o apoio incondicional da França”.
A reação internacional — sem a contaminação ideológica impregnada na sociedade brasileira já há alguns anos — parece iluminar um aspecto evidente e inegociável: as agressões precisam ser repudiadas com veemência e rapidez. É um daqueles momentos, na travessia de uma nação, no qual é fundamental escolher apenas um caminho: o da democracia ou o do autoritarismo, o da civilização ou o da barbárie. Tergiversar, agora, é a pior das escolhas. A imediata intervenção federal na segurança do Distrito Federal é um passo correto, a única resposta possível à infame displicência, para dizer o mínimo, com que a Polícia Militar controlada pelo governador afastado Ibaneis Rocha Barros Junior (MDB) acompanhou o caos — alguns PMs foram vistos a distância, sorrindo e tirando autorretratos diante da baderna. As prisões em flagrante foram fundamentais. Mas é preciso ir além. Cabe descobrir quem apoiou financeiramente os golpistas em Brasília. Cabe julgar e prender — desde que com sobejas comprovações — os criminosos. Cabe medir, sem meias-palavras, a dimensão da responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro.
De Miami, para onde embarcou na véspera da passagem da faixa ao presidente eleito, em gesto antidemocrático, Bolsonaro divulgou uma nota ambígua em suas redes sociais. “Manifestações pacíficas, na forma da lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017 fogem à regra (…) ao longo do meu mandato, sempre estive dentro das quatro linhas da Constituição respeitando e defendendo as leis, a democracia, a transparência e a nossa sagrada liberdade.” Não é verdade. Mais de uma vez o ex-presidente atacou o STF, em evidente desrespeito ao republicanismo. Em julho do ano passado, em plena campanha eleitoral, ele não poderia ter sido mais claro: “Vamos às ruas pela última vez, esses poucos surdos de capa preta têm que entender o que é a voz do povo”. Ecoava o abjeto comentário de um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, para uma plateia de estudantes, ainda em 2018: “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo. O que é o STF? Tira o poder da caneta da mão de um ministro do STF, o que ele é na rua?”.
Não se trata de matiz político — à direita, à esquerda ou ao centro. As instituições precisam ser protegidas a todo custo, alheias à ideologia, imunes ao ódio. Elas não podem ser agredidas, nem verbalmente, nem por meio de pedras ou pauladas. A Constituição não pode ser vilipendiada — o contrário disso são imagens como o brasão da República retirado de uma das paredes do STF e arremessado numa das poltronas de couro. O presidente Lula definiu os arruaceiros como nazistas e fascistas (em ato falho chegou a chamá-los de stalinistas). “Eles vão perceber que a democracia garante direito de liberdade, livre expressão, mas ela exige que as pessoas respeitem as instituições que foram criadas para fortalecer a democracia”, disse, com o poder que lhe conferiram 60 345 999 brasileiros, o equivalente a 50,90% dos eleitores. Os 58 206 354 milhões que preferiram Bolsonaro — 49,10% do total de votantes — têm o direito de escolher um outro país. Podem protestar em manifestações pacíficas contra o que quer que seja — e podem sobretudo voltar às urnas em 2026. Só não podem dar as mãos aos vândalos, em franca minoria, que alimentam o ovo da serpente à revelia da sensatez.
Tratar essa turba com leniência, sem punição, é pavimentar o caminho da barbárie. “O horror, o horror”, nas palavras de Kurtz, um europeu que enlouquecera entre os aborígines africanos, de O Coração das Trevas, livro de 1899, levado ao cinema em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola. Kurtz só aparece nas últimas páginas, mas sua presença pesa sobre a narrativa. Esse personagem, a um só tempo louco e lúcido, apaga a linha tênue entre o civilizado e o selvagem. Suas palavras finais resumem a história colonial da África: “O horror, o horror”. É o que o Brasil precisa evitar, de uma vez por todas. Talvez seja ainda mais adequado lembrar do discurso do deputado Ulysses Guimarães ao promulgar a Constituição de 1988: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”. Sempre que a choldra irresponsável marchar em Brasília, convém escutar, ler e reler esse trecho do lindo conjunto de ideias que nos trouxe até aqui — em altos e baixos, avanços e recuos, mas sempre na democracia.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824