Nos últimos quarenta anos, o MDB esteve envolvido direta ou indiretamente nos principais acontecimentos políticos do país. Na ditadura militar, o partido serviu como trincheira da oposição. A partir de 1985, a sigla teve dois presidentes da República empossados — José Sarney e Michel Temer — e partilhou o poder com os outros cinco — Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. A força motriz do MDB sempre esteve no Congresso. Por pura estratégia, o partido escolheu investir na eleição de deputados e senadores e consolidar grandes bancadas para depois negociar apoio parlamentar ao governo de turno — ciclo “virtuoso” que manteve a legenda na primeira ou, na pior das situações, na segunda órbita mais próxima de todas as administrações federais desde a redemocratização. Para 2022, a tática parecia ter mudado.
Em dezembro passado, o partido lançou a pré-candidatura de Simone Tebet à Presidência da República. Filha de um militante histórico do MDB, o ex-senador Ramez Tebet, já falecido, a senadora teve uma atuação destacada na CPI da Pandemia. Convidada pela direção da sigla a liderar um projeto de renovação, ela aceitou o desafio, mesmo ciente das dificuldades que teria para se viabilizar — as pesquisas mostram que, passados quatro meses, o nome dela aparece com 1% ou 2% das intenções de voto. O que a parlamentar ainda não sabe é que, além desse problema, está em andamento uma articulação para impedir que sua campanha prospere. No leme da trama estão os mais antigos e influentes caciques do próprio partido, como o ex-presidente José Sarney, o ex-presidente do Congresso Renan Calheiros, o senador Jader Barbalho e os ex-senadores Eunício Oliveira e Romero Jucá — um time que deu as cartas na política nacional nas últimas três décadas e que ainda detém o controle de boa parte da máquina partidária. Para eles, candidatura própria é uma péssima ideia.
Nos tempos áureos, o MDB já teve mais de 100 deputados e um terço dos senadores. Isso garantia à sigla um protagonismo absoluto — praticamente nada prosperava no Congresso sem o aval dos emedebistas. Para garantir o mínimo de estabilidade política, governos eram instados a retribuir esse apoio com cargos importantes na administração federal e vultosas verbas do Orçamento público. A Operação Lava-Jato interrompeu esse ciclo que, como se sabe, não tinha nada de virtuoso. Lideranças da legenda foram apanhadas em casos flagrantes de corrupção. Algumas foram condenadas e presas, como o ex-ministro Geddel Vieira Lima, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e o ex-governador Sérgio Cabral. Outras, como Renan Calheiros, Eunício Oliveira e Romero Jucá, responderam ou ainda respondem a processos criminais. Esse tsunami refletiu nas urnas. Em 2018, o MDB lançou o ex-ministro Henrique Meirelles como o candidato à Presidência da República. Foi um tremendo fracasso. O emedebista teve pouco mais de 1% dos votos. No Congresso, a legenda elegeu apenas 34 deputados — a menor bancada de sua história. Para os caciques, até por questão de sobrevivência, é hora de retomar a antiga estratégia.
O partido acredita que pode eleger no mínimo cinquenta deputados federais em outubro. Há, no entanto, alguns obstáculos que precisam ser superados — e o principal deles passa por Simone Tebet. Na avaliação da cúpula, é preciso concentrar os recursos disponíveis (300 milhões de reais do fundo partidário) nas campanhas parlamentares. Para o plano dar certo também é necessário que o MDB se aproxime de quem está no poder ou de quem tenha a perspectiva de chegar lá. Sarney, Renan, Eunício e Jader defendem apoio imediato à candidatura de Lula, que atualmente lidera as pesquisas. Para que isso se torne possível, a legenda precisa se afastar da chamada terceira via e, consequentemente, rifar a candidatura da senadora, que, desde o início de sua pré-campanha, prega a construção de uma alternativa à polarização. Bolsonaro, segundo ela, é o pior presidente que o país já teve. E o petista é um autocrata.
“O MDB não pode brincar de terceira via e apresentar um candidato sem competitividade. Já vimos esse filme e pagamos um preço altíssimo por ele na última eleição”, disse a VEJA o senador Renan Calheiros (veja entrevista abaixo). No mês passado, os caciques se reuniram em Brasília com representantes de onze diretórios regionais para discutir como a legenda deveria se comportar na eleição. Ficou acertado que a prioridade era garantir autonomia para que cada estado apoie o candidato a presidente que for mais conveniente — a primeira mina colocada no caminho de Tebet. Ficou combinado também que, para não precipitarem uma crise e serem acusados de sabotagem interna, os dirigentes aguardariam até o fim de maio por uma improvável arrancada da senadora nas pesquisas antes de anunciarem o golpe final contra ela. Enquanto isso, promove-se aquela típica encenação política. Na terça-feira 5, por exemplo, Sarney se deixou fotografar em uma reunião com Tebet em Brasília, demonstrando um suposto apoio. No dia seguinte, o ex-presidente, que está com 91 anos, participou de outra rodada de conversas sobre o destino da pré-candidatura da senadora, dessa vez na companhia de Renan Calheiros, adversário declarado da parlamentar.
Caso Simone Tebet insista em manter a candidatura, o plano é inviabilizá-la na convenção nacional do partido, que acontece no início do segundo semestre. A velha guarda afirma ter o controle de pelo menos catorze dos 27 diretórios estaduais da legenda. De acordo com dois caciques ouvidos por VEJA na condição de sigilo, já está combinado que esses emedebistas votarão em bloco contra o lançamento de uma candidatura própria. Aliás, não seria a primeira vez que a convenção barraria as pretensões de um potencial postulante ao Palácio do Planalto. Em 2006, os dirigentes da legenda, com o mesmo Renan Calheiros à frente, defendiam o apoio à reeleição do então presidente Lula e, por causa disso, impugnaram o nome do então governador Anthony Garotinho que pleiteava a indicação presidencial. A VEJA, o presidente do MDB, deputado Baleia Rossi, fiador de Tebet, afirma que acompanha a movimentação dos dissidentes, mas minimiza a investida que está sendo preparada: “O MDB é o partido mais democrático do Brasil, e a convenção, soberana, vai homologar a candidatura de Simone majoritariamente”, garantiu.
Na quarta-feira 6, os presidentes do PSDB, do União Brasil e do MDB — os partidos que buscam a chamada candidatura da terceira via — informaram que pretendem anunciar em maio um nome de consenso entre as três legendas para disputar a eleição presidencial. Em tese, estão no páreo o ex-governador de São Paulo João Doria, o ex-juiz Sergio Moro e Simone Tebet. Nos últimos dias, em busca de apoio, a senadora se reuniu com Moro e com o ex-governador tucano Eduardo Leite. Na sequência, concedeu uma entrevista na qual defendeu a convergência dos partidos de centro em torno de uma candidatura única capaz de enfrentar Lula e Bolsonaro e se apresentou mais uma vez como alternativa para encabeçar o projeto, sem saber que os colegas do partido, às escuras, conspiram contra a sua intenção.
“Não podemos ter um Meirelles 2”
O senador Renan Calheiros é membro da executiva nacional do MDB e um dos mandachuvas do partido. Em entrevista a VEJA, ele diz que seu grupo político controla a maioria dos diretórios e afirma que a candidatura de Simone Tebet não será homologada.
Por que o senhor defende a ideia de que o MDB desista de ter candidatura a presidente? O MDB não pode brincar de terceira via e apresentar um candidato sem competitividade. Já vimos esse filme e pagamos um preço altíssimo por ele na última eleição. Nosso candidato (Henrique Meirelles, em 2018) teve 1% dos votos e massacrou a bancada. O MDB teve suas bancadas reduzidas pela metade na Câmara e no Senado.
Mas ainda faltam seis meses até a eleição. A senadora Simone Tebet, pré-candidata do partido, não pode se viabilizar? A Simone indiscutivelmente é uma grande senadora, um quadro respeitável, mas, se ela não mexer na fotografia das pesquisas, é melhor apoiar o Lula. Essa eleição tem um significado único: apoiar o Lula ou não ter candidato. Não podemos ter um Meirelles 2.
Quem trabalha contra a candidatura da senadora são essencialmente os caciques do MDB? Alguns setores do partido têm conversado sobre o que fazer: uns defendem a ideia de que se estabeleça um prazo, outros se impacientam quando ouvem especulações quanto às alianças dela com Doria ou com Moro. O fato é que, se não tiver competitividade, não dá para brincar de ter candidato a presidente porque o partido é que pagará a conta.
A convenção do MDB pode rejeitar a candidatura de Simone? Na reeleição do Lula, o MDB tentou apresentar um candidato, Anthony Garotinho, mas a convenção não homologou o nome dele porque a grande maioria apoiava o então presidente. Deveríamos impor o prazo do bom senso, até os primeiros dias de maio, para que se fizesse uma avaliação da viabilidade da candidatura dela. Se crescer nas pesquisas, ótimo, mas dificilmente o MDB homologará a candidatura se ela ficar com 1% e teimar em concorrer.
Isso é uma posição majoritária dentro do partido? Temos 600 convencionados. Todos os diretórios do Nordeste e muitos dos estados do Norte estão conosco, o que garante maioria para rejeitar a candidatura.
Por que a terceira via não é uma opção? Nas pesquisas, desde julho passado está tudo estável nas intenções de voto dos pré-candidatos que não são nem Lula nem Bolsonaro. Não há nem politicamente nem eleitoralmente nem matematicamente como fazer uma projeção de crescimento na terceira via porque eles acabam tirando votos uns dos outros. De que adianta uma frente de 1 bilhão e meio de reais e um candidato com 1%, 2% dos votos?
Se o cenário é esse, por que a direção do MDB ainda mantém a pré-candidatura de Simone? Não sei. É uma exposição grande para a senadora manter uma candidatura sem perspectiva eleitoral, mas é ainda pior para quem tem projeto de poder nos estados.
Publicado em VEJA de 13 de abril de 2022, edição nº 2784