Bolsonaristas X Lavajatistas: A trégua por um fio
A queda de braço provoca novas turbulências na relação entre o governo, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal
A declaração pegou de surpresa até Sergio Moro. Na terça-feira 24, em seu discurso na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, Jair Bolsonaro elogiou o ministro da Justiça logo depois de acusar os governos anteriores de atos de corrupção. “Foram julgados graças ao patriotismo, perseverança e coragem de um juiz que é símbolo do meu país, o doutor Sergio Moro”, disse o presidente. Em Brasília, onde bolsonaristas e lavajatistas duelam à luz do dia, assessores presidenciais logo fizeram circular a versão de que o afago sepultaria definitivamente a disputa entre os dois grupos e, claro, entre seus respectivos líderes. Seria mais um gesto de Bolsonaro rumo à pacificação dentro do governo e na relação com os outros poderes. Como de costume, faltou combinar a versão palaciana com os fatos. Em vez da propalada harmonia, a semana trouxe muita turbulência por toda a Praça dos Três Poderes. O saldo dessa confusão: pressão de políticos sobre o Supremo Tribunal Federal (STF), retaliação de congressistas a investigadores e adiamento da votação da reforma da Previdência.
O estopim para o recrudescimento do clima de desconfiança entre representantes de Executivo, Legislativo e Judiciário, que dizem manter um pacto de harmonia em curso, foi uma operação da Polícia Federal contra Fernando Bezerra (MDB), líder do governo no Senado, e seu filho, o deputado federal Fernando Filho. Na quinta-feira 19, a PF realizou busca e apreensão no gabinete da liderança do governo, como parte da investigação que apura se os dois parlamentares embolsaram 5,5 milhões de reais em propina. A ação foi autorizada pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso, reconhecido por decisões favoráveis à Operação Lava-Jato, apesar do parecer contrário da Procuradoria-Geral da República. A reação uniu aliados do presidente e um grupo de senadores, que, a despeito dos discursos de Bolsonaro contra a chamada velha política, marcham juntos para controlar as investigações em curso sobre esquemas de corrupção. O presidente manteve Fernando Bezerra firme e forte no cargo de líder, sob o pretexto de que ele é peça fundamental para garantir a aprovação da reforma da Previdência.
Publicamente, coube aos senadores responder à batida da PF, órgão que está subordinado ao Ministério da Justiça, comandado por Moro. Na noite de segunda-feira, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, reuniu colegas para conversar sobre o caso. No encontro, o espírito de corpo falou mais alto. Houve consenso sobre a impertinência da busca e apreensão. Houve consenso sobre o perigo do precedente — se o líder do governo podia ser facilmente alcançado por uma investida policial no Senado, imagine o que não seria feito com um senador sem cargo expressivo. Houve consenso também sobre a digital por trás da operação. Muitos apontavam para Moro, o adversário a ser batido. Na terça-feira, no mesmo dia em que Bolsonaro discursava na ONU, Alcolumbre marchou até a sede do Supremo, ladeado por colegas, para um encontro com o presidente do tribunal, Dias Toffoli, crítico notório do que considera excessos da Lava-Jato. Alcolumbre desfiou seu rosário de queixas e pediu a anulação da operação contra Bezerra.
O presidente do Senado tem uma carta de pressão na manga: o pedido de instalação de uma CPI para investigar o Judiciário, que ele, até agora, não tirou da gaveta. Nos últimos meses, Toffoli conversou com vinte bancadas para, entre outras coisas, impedir a instalação da comissão. O risco existe. A VEJA, o líder do MDB no Senado, Eduardo Braga, resumiu assim a situação: “Quem falou de pacto foi o presidente do STF. O que nós temos falado é de pacificação. Queremos pacificar o país e evitar a ação dos incendiários”. O lavajatismo incomoda o presidente e fatia dos parlamentares, especialmente aqueles que são investigados por corrupção e desvio de recursos públicos. Uma das razões para o incômodo está expressa em números. Segundo pesquisa do Datafolha, a aprovação de Moro em agosto era de 51%, enquanto a de Bolsonaro estava em 29%. Desde que trocou a magistratura pela política, o ministro é visto como um potencial candidato à Presidência e monitorado por grupos diversos, incluindo os donos do dinheiro.
Um grupo de empresários e banqueiros encomendou recentemente a uma agência uma pesquisa sobre a sucessão presidencial. Resultado: Moro aparece em primeiro lugar, com 34%, seguido de Bolsonaro, com 21%. Foram ouvidas 2 000 pessoas. Apesar de ter seu prestígio como juiz arranhado pelas revelações de que agiu de forma ilegal à frente da Lava-Jato, Moro continua forte como político. Por isso passou de pedra a vidraça. Usando como pretexto a operação da PF no gabinete da liderança do governo, deputados e senadores derrubaram uma série de vetos de Bolsonaro ao projeto de lei de abuso de autoridade. À primeira vista, foi uma derrota do governo, mas só à primeira vista. Com seu filho Flávio investigado pela suspeita de recolher parte do salário dos servidores de seu gabinete quando era deputado estadual no Rio, Bolsonaro está em campanha para manietar os órgãos de controle e colocar rédea na atuação dos investigadores, procuradores e juízes. A derrubada dos vetos, portanto, não lhe tira o sono. A derrota, nesse caso, foi imposta ao lavajatismo. É sobretudo de Moro.
O líder Fernando Bezerra fez um duro discurso contra a ação da PF: “Está claro que fui vítima de uma operação política articulada para atingir o Congresso Nacional e o governo do presidente Bolsonaro”. Esse tipo de retórica encontra eco nos gabinetes de políticos. Nas ruas, no entanto, o lavajatismo ainda tem audiência maior. Na última quarta-feira, um grupo de manifestantes foi para a frente do STF protestar contra os ministros do tribunal e chegou a pedir o fechamento da Corte. Eles temem que o plenário do Supremo vete pilares da Lava-Jato, como o cumprimento de pena após condenação em segunda instância, regra que levou à prisão o ex-presidente Lula. Os manifestantes também montaram acampamento em frente ao Congresso, entoaram gritos a favor da CPI da Lava-Toga e trataram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o senador Davi Alcolumbre como traidores. O boneco inflável de Moro no papel de super-homem estava lá, como um lembrete de que, enquanto o lavajatismo tiver força, qualquer acordão entre os chefes dos três poderes enfrentará resistência.
Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654