Com um pedaço de pau, um estilingue e uma trouxinha com bolas de gude, o auxiliar de limpeza paraense Janailson Alves da Silva, 26 anos, saiu do quartel-general do Exército, no Setor Militar Urbano de Brasília, onde bolsonaristas estavam acampados desde a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em direção à Praça dos Três Poderes, a quase 9 quilômetros dali. A marcha começou por volta das 11 horas do domingo 8, e duraria cerca de três horas. Às pessoas que estavam ao seu lado, Janailson teria dito em alto e bom som que iria “quebrar tudo”. No meio do caminho, enquanto ele e centenas de golpistas seguiam sob a escolta da PM, Janailson foi abordado e preso. Na delegacia, contou que estava desde 12 de novembro acampado na cidade e que fazendeiros de Água Azul do Norte (PA), a sua terra natal, bancavam a alimentação dele e de outra dezena de pessoas na mesma situação. “Quando acabava a comida, eles mandavam um Pix. Estamos aqui para evitar que a cidade fique nas mãos dos petistas”, relatou ao delegado.
Janailson é um personagem típico da fauna que protagonizou o deprimente espetáculo na capital federal. Teve passagem e estadia bancadas por gente mais poderosa, trazia armas e disposição suficientes para um confronto e reproduzia um discurso delirante em voga no bolsonarismo: o da falta de legitimidade de Lula para ser o presidente. A Polícia Federal procura seus comparsas e, principalmente, os financiadores da caravana criminosa. Uma das suspeitas é que haja a participação de empresários que atuam à margem da lei, sobretudo na agropecuária, na extração de madeira e no garimpo ilegais. Há manifestantes que admitiram ter sido pagos para ir a Brasília — não só o custeio de alimentação. Gilvã Estrela da Silva, 29 anos, recebeu 400 reais para ir de Salvador a Brasília em uma caravana, mas não diz quem pagou. Afirma também que comeu e bebeu sem gastar nada durante a estadia na capital. Foi recrutado por golpistas em sua cidade quando vendia picolés em um acampamento. Há ainda quem se meteu na confusão por causa própria, como a empresária Mônica Taniyama de Barros, 46 anos, que saiu de São Paulo para ser presa ao invadir a Câmara com outras seis pessoas, algumas das quais com rojões e pedaços de madeira. O arsenal apreendido com parte dos criminosos, por fim, não deixa dúvidas sobre o caráter dos distúrbios travestidos de ato político. Houve gente presa com bomba, faca, maçarico, cassetete, material para explosivo caseiro e até bomba de gás lacrimogêneo (veja abaixo o perfil de alguns criminosos).
A quantidade de presos também não deixa dúvidas sobre o tamanho da mobilização. Até quinta-feira, 12, nada menos do que 1 398 pessoas deram entrada no sistema penitenciário. Dessas, 904 eram homens, que foram levados para o presídio da Papuda, e 494 eram mulheres, que estão na Penitenciária Feminina do DF, a “Colmeia”. Outras centenas, detidas após o fim do acampamento golpista, foram liberadas, não sem antes ser fichadas, deixar impressões digitais e ser formalmente ouvidas pela PF. A reportagem analisou 165 depoimentos de pessoas detidas, que dão uma boa amostra do perfil dos terroristas bolsonaristas. Por faixa etária, os maiores contingentes são de pessoas com 40 a 50 anos (52 presos), seguidos por quem tem de 19 a 39 anos (47) e de 51 a 60 (29). Havia sete detidos com mais de 70 anos. Quanto aos estados de origem, predominam São Paulo (quarenta pessoas), Distrito Federal (22), Minas Gerais (dezoito), Rondônia (onze), Santa Catarina (onze) e Paraná (dez).
A aventura antidemocrática no Planalto vai custar caro aos envolvidos. Todos os presos foram indiciados pelo crime de golpe de Estado (“tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”), cujas penas vão de quatro a doze anos de cadeia. Esse crime foi incluído no Código Penal em 2021 (art. 359-M) com a aprovação da Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito, substituta da Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura. Alguns detidos, a depender da circunstância em que foram pegos, responderão por dano ao patrimônio, furto, roubo e lesão corporal, entre outros crimes. A intenção do Ministério da Justiça é que também sejam processados para ressarcir os prejuízos que causaram aos cofres públicos.
E a situação pode ficar ainda pior. Há a possibilidade de ser aplicada a lei antiterrorismo, de 2016, principalmente depois que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, em decisão no âmbito do inquérito dos atos antidemocráticos, classificou as depredações como “atos terroristas contra a democracia e as instituições”. A imputação, que pode elevar as penas para até trinta anos de prisão, é alvo de dúvida no mundo jurídico, porque a lei deixou de enquadrar como terrorismo atos violentos praticados por motivação política. Isso ocorreu porque, quando o Congresso definiu o que é terrorismo, parlamentares de esquerda se opuseram à ideia de incluir a motivação política por temer que a lei criminalizasse movimentos sociais. Juristas apontam que, mesmo assim, há espaço para que os vândalos que destruíram as sedes dos poderes da República respondam por esse crime.
A ironia da estreia do terrorismo bolsonarista em larga escala é que os próprios delinquentes ajudaram a produzir provas contra si. Além de se exporem nas redes sociais, transmitindo ao vivo a própria atividade criminosa, os golpistas deixaram muitos vestígios. A cena de um homem simulando defecar sobre uma mesa no STF, por exemplo, chocou o país. Peritos que estiveram nos prédios relataram que, de fato, havia fezes espalhadas por alguns pontos. Amostras do material, bem como de impressões digitais e de sangue das pessoas que se feriram com vidraças quebradas, foram coletadas para realização de exame de DNA no curso da investigação, quando será preciso apontar o que cada terrorista fez na cena do crime.
A maneira como se expuseram, até empolgados com as ilegalidades que praticavam, expõe um delírio típico dos novos terroristas: o de que estão fazendo a coisa certa e que seriam, de alguma forma, protegidos. Policiais que acompanham as apurações dizem que esse grupo não se importou de produzir provas porque realmente acreditava que sairia impune. A intenção era acampar nos prédios até que o Exército chegasse para tomar o controle. Muitos presos afirmaram em seus depoimentos que estavam certos de que as Forças Armadas os defenderiam — o que, evidentemente, não aconteceu. “Existe uma narrativa, um país paralelo que algumas pessoas criaram, de que há uma conspiração comunista e de que as Forças Armadas são o último repositório de confiança, um ‘poder moderador’, garantidor final das instituições democráticas, o que não aparece em momento algum do texto constitucional. O guardião da Constituição é o STF”, observa o doutor em ciência política e professor do Insper Leandro Consentino.
A má notícia é que essa loucura coletiva pode estar longe de acabar. Segmentos mais renitentes entre os extremistas podem fazer eclodir novos tipos de ação, mas nada com a magnitude do que se viu no dia 8. Já houve quem chegasse a convocar bloqueios em refinarias de petróleo do país (leia a reportagem na pág. 48), o que levou governos de vários estados a se mobilizarem, mas isso não ocorreu. O problema para as autoridades agora é o eventual surgimento de “lobos solitários”, imbuídos de algum desejo de se tornarem heróis. “Basta um homem com um fuzil ou com uma bomba para armar um atentado”, alerta Claudio Couto, professor da FGV. A preocupação aumenta porque o governo Jair Bolsonaro facilitou o acesso de civis a armamentos antes restritos às polícias. Leandro Consentino, do Insper, também acredita que manifestações de grupos de extrema direita não vão desaparecer, mas tudo dependerá de como a Justiça e o mundo político lidarão com o caso recente. “Enquanto quem lidera e financia não for responsabilizado, esse movimento continua subsistindo, com chances de reaparecer de anos em anos na esfera eleitoral”, diz. Nesse contexto, são promissores os sinais emitidos até aqui por autoridades dos três poderes, que prometem reagir com todo o rigor da lei. O país, chocado, não espera menos do que isso.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824