Os atropelos à Constituição e à democracia sinalizados com frequência por Jair Bolsonaro acenderam o sinal amarelo no universo político. Foi-se o tempo em que as lideranças partidárias consideravam que os arroubos faziam apenas parte do “jeito de ser” do capitão reformado do Exército. A ida do chefe do Executivo a duas manifestações a favor de intervenções militares para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) provocou uma convergência entre quadros históricos e novos expoentes da esquerda e da direita democrática que estavam distanciados. A cada novo passo que o presidente dá rumo à radicalização, articulações se intensificam nos bastidores para formar uma frente ampla e suprapartidária em defesa das instituições. São diálogos capazes de aproximar nomes tão antagônicos quanto o presidente do PSDB, Bruno Araújo, responsável pelo voto que selou o impeachment de Dilma Rousseff (PT) na Câmara, em 2016, e o ex-prefeito Fernando Haddad, o candidato petista derrotado no segundo turno da eleição de 2018. O movimento ainda está começando a ganhar corpo e já enfrenta alguns problemas, mas representa um caminho interessante dentro de um país que sofre há sete anos com a polarização. O primeiro resultado foi a participação dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva no evento de 1º de Maio organizado pelas principais centrais sindicais. Foi a primeira vez que os rivais dividiram o palanque — ainda que virtual — desde 1989, quando o tucano apoiou o petista no segundo turno contra Fernando Collor. Por causa do coronavírus, a manifestação foi pela internet, com a exibição de vídeos dos ex-presidentes e de outras lideranças, entre elas Ciro Gomes (PDT), desafeto tanto de FHC quanto de Lula. “Acho importante que, em momento no qual os setores mais ideologizados do governo veem fantasmas ‘globalistas’ em toda parte e utilizam uma retórica antidemocrática, haja uma união de todos”, afirmou a VEJA FHC. “Não é hora para remoer mágoas nem para criar inimigos. Só coesos sairemos melhor do mau momento.”
Antes disso, um manifesto já havia sido divulgado em março pedindo a renúncia de Bolsonaro, mas entre as assinaturas constavam apenas nomes de esquerda, entre eles Haddad e Ciro. A ampliação desse arco de alianças ganhou força após o dia 19 de abril, quando Bolsonaro foi à primeira manifestação por intervenção militar. Logo depois, Haddad telefonou para os tucanos FHC e Bruno Araújo e para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para discutir o que poderia ser feito para conter qualquer aventura golpista. Na conversa com Maia, o petista tratou de saídas constitucionais para a crise, sem que se aprofundassem sobre a viabilidade de um impeachment — há mais de trinta pedidos na mesa de Maia, mas o deputado dá sinais de que, por ora, não dará prosseguimento a esse tipo de iniciativa. Além de monopolizar a pauta do Congresso no momento em que é preciso aprovar medidas contra a pandemia, o impeachment é visto como inviável enquanto Bolsonaro mantiver o apoio de 30% da população. Em relatório distribuído nesta semana a clientes internacionais, a consultoria Eurasia afirma que a discussão só ganhará força se o respaldo popular cair a menos de 15%, mesmo entendimento dos líderes de partidos envolvidos na aproximação. Araújo tem dito a aliados que o impeachment não pode ser “vulgarizado” e que a sigla não embarcará em aventura dessa natureza. No PT, a percepção de Lula é de que o partido ainda é muito malvisto pela população e não poderia encabeçar um movimento sob o risco de esvaziar o apoio à iniciativa. As únicas conversas reais para viabilizar a cassação são tocadas por outros partidos da esquerda: PDT, PSB, PV e Rede. As siglas, que reúnem apenas 63 dos 342 deputados necessários para aprovar um impeachment, fazem reuniões on-line às segundas-feiras para debater a questão. Há a intenção de organizar um “showmício” virtual, espécie de live com artistas e políticos, para impulsionar a adesão da sociedade. Quem participa esporadicamente é Ciro, que aproveita para construir as primeiras alianças tendo em vista a candidatura à Presidência em 2022.
Embora não haja ainda adesão ao impeachment no Congresso, os parlamentares também ficaram alertas à radicalização do presidente. Na semana seguinte à participação de Bolsonaro em ato antidemocrático em frente ao quartel-general do Exército, o senador Irajá Abreu (PSD-TO) criou um grupo de WhatsApp para que fosse aberto um canal direto entre os 81 senadores. Por motivos óbvios, Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) foi o único a abandonar o chat virtual até agora. Uma das questões discutidas foi a mudança do método de escolha do chefe da Polícia Federal. Para evitar interferência política, o presidente receberia uma lista tríplice e o escolhido por ele teria de ser sabatinado no Senado. A ideia resultou em uma proposta de emenda à Constituição (PEC) protocolada por Eduardo Girão (Podemos-CE) no dia 28.
Entre as lideranças partidárias, as discussões agora tentam caminhar para ações mais concretas. Haddad quer um novo manifesto contra Bolsonaro que abarque políticos além do campo da esquerda, mas não se discutiu ainda qual seria o teor desse documento. Por enquanto, as conversas visam a aparar as arestas e resolver antigas desavenças, fruto de duas eleições desgastantes e de um processo de impeachment. São também uma forma de mostrar a instituições como o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República que há disposição no campo político para defendê-las. “Não faz sentido a divisão desses segmentos na atual conjuntura”, afirma o cientista político José Álvaro Moisés, da USP. “Estabelecer um entendimento entre os setores mais plurais em defesa da democracia é o norte a ser seguido. A cultura política tradicional tende a separar e antagonizar, enfatizando a polarização. Mas a cultura mais cooperativa mostra que a democracia é maior do que tudo isso.”
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Clique e AssineO movimento enfrenta, é claro, obstáculos. No 1º de Maio, a imensa maioria da diretoria da CUT reclamou dos convites a FHC, Maia e ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Guilherme Boulos, do PSOL, afirmou que não participaria — e não participou, assim como os dois chefes do Congresso. Em outra frente, o petista Aloizio Mercadante convidou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), para um congresso que as fundações de partidos de esquerda estão organizando. Doria agradeceu, mas disse que não tinha agenda livre. O tucano, inclusive, rejeitou uma orientação de aliados para liderar a criação de uma frente em defesa da democracia, alegando que soaria como uma provocação a Bolsonaro. Há também desavenças que ainda não cicatrizaram totalmente. Ciro tem profundo rancor do PT e ainda culpa Haddad pelo naufrágio de sua candidatura em 2018 — só aceita conversar com o ex-ministro Tarso Genro, que tem atuação independente da cúpula petista. A esquerda também continua com canais fechados em relação ao ex-presidente Michel Temer (MDB), considerado “golpista”. Até o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), o pioneiro na busca por diálogo com a direita, diz ser contra procurar Temer.
Ninguém espera que a abertura de diálogos vá resultar em alianças entre rivais na eleição de 2022, mas declarações recentes apontam para uma mudança de postura em relação ao último pleito. FHC, que se manteve neutro entre Bolsonaro e Haddad, já afirmou que vai apoiar quem se mostrar uma antítese ao bolsonarismo, independentemente do partido. Afirmações semelhantes foram compartilhadas por Dino e Paulo Hartung (sem partido), o ex-governador do Espírito Santo que orienta o apresentador Luciano Huck no universo político. Diante de uma maré de nostalgia pelos tempos sombrios da ditadura (Bolsonaro alimentou a onda novamente nos últimos dias ao receber no Palácio do Planalto o Major Curió, que comandou a repressão do regime à Guerrilha do Araguaia), a mobilização é um bom sopro de esperança para o futuro da política e para a manutenção da ordem democrática.
Publicado em VEJA de 13 de maio de 2020, edição nº 2686