Para sair vitorioso na mais acirrada eleição presidencial desde a redemocratização do país, Luiz Inácio Lula da Silva teve de caminhar em direção ao centro e ampliar o palanque para receber políticos de mais de quinze partidos, da esquerda à direita. Apesar disso, saiu das urnas longe de ter maioria no Congresso. Antes da posse, já teve o desafio de articular a aprovação de uma mudança na Constituição que flexibilizou o teto de gastos para garantir recursos a programas sociais, uma das principais promessas eleitorais. Só conseguiu porque teve a ajuda de deputados de partidos fora da esquerda, muitos deles aliados de Jair Bolsonaro na eleição. Depois dessa primeira sinalização do que poderia vir a ser uma base parlamentar, Lula cedeu espaços no governo a siglas que nem o apoiaram na campanha, como União Brasil e PSD, em troca de aliança política. Tudo isso, no entanto, não garantiu ao petista um céu de brigadeiro no novo Congresso, que inicia o seu mandato no dia 1° de fevereiro. Pelo contrário, já é possível ouvir as primeiras trovoadas.
Uma simples “conta de padaria” já mostra o tamanho da encrenca: somados os deputados de todos os partidos que têm ministérios e de outros que o apoiaram formalmente na campanha, Lula teria 282 votos, insuficientes até para aprovar uma emenda à Constituição, que demanda 308 apoios. Mas o cálculo não é tão simples, e o saldo é ainda pior, porque partidos importantes que aceitaram posições na máquina federal não estão fechados com o governo. Parte das bancadas na Câmara de União e PSD está insatisfeita, enquanto legendas menores que acompanharam Lula desde o primeiro turno e foram alijadas da Esplanada estão à espera de algum agrado — leia-se cargos, em especial no segundo escalão, que começa a ser dividido.
Um dos nós desse tipo de negociação é que não basta entregar uma pasta a um político de determinado partido. O ministro deve ter representatividade suficiente para garantir votos de parlamentares de sua sigla. Além disso, indicar alguém ligado à bancada da Câmara não se confunde com contemplar os senadores da mesma legenda (e vice-versa). Entre os novos inquilinos da Esplanada, o União é o mais bem-acabado exemplo de articulação que deu errado. Membros da bancada de 59 deputados estimam que um terço, no máximo, é governista. Uma declaração de independência, já ensaiada algumas vezes, deve ocorrer em breve.
Embora o governo atribua ao partido as indicações dos ministros Juscelino Filho (Comunicações), Daniela Carneiro (Turismo) e Waldez Góes (Integração Nacional), os descontentes dizem que as tratativas passaram pelo líder do partido no Senado, Davi Alcolumbre (AP), sem que ele falasse pela sigla. Juscelino e Daniela, apesar de serem deputados, não têm densidade política, enquanto Waldez, aliado de Alcolumbre e filiado ao PDT, ocupou o ministério depois de o líder do União na Câmara, Elmar Nascimento, ter sido barrado pelo PT. Ainda agravaram o ambiente as revelações de que Daniela tem ligações com milicianos em Belford Roxo (RJ), cidade onde seu marido, Waguinho, é prefeito. “O governo teve oportunidade de fazer uma aliança, um casamento de papel passado, mas preferiu ter o partido como ‘amante’ ”, ironiza Nascimento. O União Brasil não é o único aliado que embarcou no governo de última hora e com um pé dentro e outro fora da canoa. As frustrações também atingem parte da bancada do PSD, que viu o deputado André de Paula (PE) ser nomeado para a pasta da Pesca. “Esse ministério só atende às regiões Norte e Sul do país”, reclama um deputado do Sudeste, que faz questão de comparar o porte do ministério oferecido aos deputados pessedistas ao das pastas ocupadas pelo PSD do Senado: Agricultura (Carlos Fávaro) e Minas e Energia (Alexandre Silveira).
O desconforto atinge também aqueles que botaram os dois pés na canoa lulista ainda no primeiro turno, mas ficaram fora da festa por ser considerados passageiros de segunda classe — ou seja, pequenos demais. O maior deles, o Avante (sete deputados), é quem mais ajudou Lula na campanha, por meio do deputado André Janones (MG) nas redes sociais. O partido queria um ministério (Turismo, Pesca ou Secretaria de Comunicação), mas saiu de mãos abanando. Outro aliado de primeira hora descontente é o Solidariedade, cujo principal líder, Paulinho da Força, ficou sem mandato e sem cargo. Além disso, viu rivais no sindicalismo como Luiz Marinho (Trabalho) e Carlos Lupi (Previdência) ganharem ministérios — o prêmio de consolação pode ser um cargo no Sebrae ou na Ceagesp. No PV, nem a ida de Leandro Grass para o Iphan acalmou a bancada. “A negociação não passou por nós, foi feita diretamente pelo Leandro. Agora o que vier será a sobra da sobra, de terceiro ou quarto escalão”, diz um insatisfeito. Ele lembra que o PCdoB também elegeu seis deputados, mas recebeu um ministério (Ciência e Tecnologia) e uma secretaria na pasta da Saúde.
Com a nova legislatura batendo à porta e com o governo precisando deslanchar os seus projetos, os líderes de Lula terão de se virar com um cenário que não é o ideal: negociar cada proposta, sempre correndo o risco de pagar um preço alto dependendo da necessidade. É o tipo de relação que sempre consagrou o Centrão. No atual momento, mesmo deputados de partidos que apoiaram Bolsonaro, como PL e PP, sobretudo no Nordeste, estão na agenda de diálogo — não se descarta que apadrinhem indicações a escalões subalternos. O que não falta é cargo importante. Elmar Nascimento, o cacique preterido do União, pode ficar com a Codevasf, autarquia que toca projetos importantes no Nordeste. Entre os nanicos, estão na mesa de negociações INSS, Incra, agências reguladoras e estatais como os Correios, empresa que deveria, mas não foi privatizada no governo Bolsonaro. “Não se monta governo e base sem conviver com esses problemas, é natural que os partidos aliados façam seus pleitos”, releva o futuro líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE).
O chamado “presidencialismo de cooptação” não é novidade no Brasil. A troca de ministérios, cargos e emendas por apoio político tem sido regra amplamente disseminada. No caso de Lula, no entanto, o histórico de busca por apoios inclui monumentais esquemas de corrupção, como o mensalão e o petrolão. Reabilitado politicamente, o petista tem tarefas importantes a cumprir, sobretudo na economia, e precisará reforçar as negociações no Congresso para aprová-las. Embora siga a receita do passado para reunir apoios, espera-se que desta vez tudo seja feito de modo mais republicano. O começo, no entanto, já preocupa.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825