Responsável por municiar o presidente Lula com relatórios sensíveis e confidenciais sobre ameaças, convulsões sociais, políticas estratégicas e até potenciais inimigos externos, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) encaminha ao Palácio do Planalto desde os primeiros dias do ano informes sigilosos com dados que podem levar a potenciais autores, financiadores e artífices das depredações provocadas por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro no dia 8 de janeiro. A produção do inventário, um conjunto de imagens, avaliações de campo e cruzamento de dados que possam explicar o principal ato antidemocrático da história recente começou ainda no governo passado, quando integrantes do serviço secreto brasileiro se infiltraram em grupos de WhatsApp, se misturaram a manifestantes que protestavam contra o resultado das eleições, vasculharam relações empresariais de pretensos alvos e trocaram informações com setores de inteligência, mas mudou de patamar quando a agência acabou convocada para abastecer a equipe à frente da intervenção na segurança pública do Distrito Federal.
Instada a mapear a atuação de grupos que, por extremismo, poderiam provocar tumultos, sabotagens, bloqueio de rodovias e repiques da depredação das sedes dos três poderes, a Abin produziu até o dia 2 de março pelo menos onze relatórios de inteligência exclusivos sobre o quebra-quebra. Os documentos de acesso restrito foram encaminhados à CPI criada para apontar atos de omissão e endosso aos ataques em Brasília e reúnem informações sobre personagens militares de baixa patente, grupos reservados de mensagens que pregavam a tomada do poder, hipóteses de que tresloucados atentaram para instituir o caos no país e planos de arrecadação para que os vândalos pudessem deixar a cidade depois da missão cumprida. Em parte deles, a agência é clara ao afirmar que certos grupos ainda precisam ser monitorados para que novos episódios como os de 8 de janeiro não se repitam.
VEJA teve acesso à íntegra dos onze informes, produzidos entre os dias 27 de dezembro de 2022 e 2 de março passado. Quatro deles foram confeccionados na mesma semana dos ataques. Eis o que diz cada relatório de inteligência da Abin:
- Participação do agronegócio em atos antidemocráticos: investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como virtual esteio de financiamento de ataques às instituições, o setor do agronegócio é citado pela Abin como potencial financiador do transporte de manifestantes e das ações extremadas do dia 8. O Movimento Verde e Amarelo, braço informal do setor formado em grande parte por produtores de soja, ocupa posição de destaque no informe da agência, seja porque defende pautas como a intervenção militar seja porque apoiou outros atos contra instituições, como um acampamento de extremistas em Brasília em 2020, um protesto de caminhões e tratores na Esplanada dos Ministérios e o recente bloqueio de rodovias após a vitória de Lula nas eleições.
- Contratantes e passageiros dos atos do dia 8: A partir da troca de informações com autoridades e autarquias ligadas ao setor de transportes, a Abin contabilizou que um movimento orquestrado levou a Brasília, a partir do dia 4 de janeiro, 3.875 pessoas em 103 ônibus fretados. A ideia era reverter a tendência de esvaziamento do acampamento golpista instalado em frente ao Quartel do Exército. A agência levanta a hipótese de que “laranjas” tenham sido utilizados para camuflar os verdadeiros financiadores das caravanas. Formalmente, foram identificados 83 pessoas e 13 entidades – listadas um a um pela agência – que custearam a ida dos manifestantes a Brasília.
- Mobilização para deixar Brasília: A agência identificou que um candidato a deputado derrotado nas eleições do ano passado coordenava o financiamento de passagens aéreas para manifestantes deixarem a cidade após o quebra-quebra. Propagador de fake news sobre o processo eleitoral e sobre os detidos no dia 8, ele já havia participado de atos de vandalismo em frente à Polícia Federal no dia da diplomação de Lula, em dezembro, e anunciava aceitar pagamentos até do exterior para comprar os bilhetes.
- Avaliação de conflitos sociais: A Abin monitorou diferentes grupos sociais para medir o risco de tumulto em protestos após o 8 de janeiro. Ao longo de sete dias, analisou convocações, adesão, recursos, impactos, incidentes e ameaças. No informe, atribuiu selo de alerta alto – designado por uma tarja vermelha – a descobertas como protestos que miravam torres de transmissão de energia, uma mochila com supostos explosivos encontrada na Bahia e atos de sabotagem que poderiam interromper o fornecimento de luz.
- Ameaças extremistas após a posse: Depois da posse do presidente Lula, a divulgação de teorias conspiratórias, fake news e discursos violentos atuou como catalisador para a radicalização de pequenos grupos ou lobos solitários, diz a Abin. Em mensagens captadas pela agência, houve incitações para que o Congresso fosse invadido no dia 6 de janeiro, mesma data em que, dois anos antes, o Capitólio americano foi tomado por vândalos alinhados a Donald Trump. O informe registra que já havia detectado aumento no volume de falas extremadas na transição de governo, principalmente vindos de contestadores do sistema eleitoral. Um dos grupos identificados é conhecido como Boinas Vermelhas e é formado por reservistas do Exército com discurso radical e propensão à violência.
- Ataques a torres de transmissão de energia: Depois dos atos violentos em Brasília, a Abin identificou ataques a torres de linhas de transmissão de energia em pelo menos quatro estados. Houve cabos propositadamente rompidos em Rondônia, a queda de uma torre no Paraná, prováveis tentativas de sabotagem em cidades do interior paulista e danos a estruturas em Pernambuco. Às vésperas da posse presidencial, registra a agência, foram encontrados botijões de gás prontos para serem explodidos em uma torre de energia no Maranhão. Diante das ameaças, a Agência Nacional de Energia Elétrica, o Ministério de Minas e Energia e o Operador Nacional do Sistema Elétrico criaram um grupo de acompanhamento contra potenciais ataques.
- Treinamento militar e tomada do poder: A Abin monitorou um indivíduo específico, que em um grupo de Telegram divulgou mensagens para que novos atos violentos fossem feitos após o dia 8 de janeiro. No diálogo, o extremista afirma ser necessário estruturar “células de autodefesa” e informa que está montando um grupo no estado do Rio em que policiais estariam dispostos a treinar e armar a população para um futuro levante. O alvo da agência de inteligência integra um grupo conhecido como Ucraniza Brasil, formado por pessoas que defendem a tomada do poder pela resistência civil. A comunidade do Ucraniza no Telegram, diz a Abin, é reduto de pessoas que tentam formar grupos paramilitares. Os dados do extremista foram encaminhados à Diretoria de Inteligência da Polícia Federal.
- Vândalos ainda soltos: A Abin listou 27 pessoas identificadas no quebra-quebra que até o fim de janeiro ainda não haviam sido detidas pelas forças policiais. O informe divide os alvos em categorias – lideranças identificadas, invasores com arma de fogo, influenciadores responsáveis por discursos radicais, organizadores de caravanas, financiadores e invasores – e reúne, por exemplo, militares da reserva, empresários, políticos, servidores e pessoas com histórico de violência contra mulher e de porte ilegal de armas.
- Participação de grupos econômicos em comboios de caminhões: Informe da agência de inteligência registra que, após o segundo turno, foram identificados 272 caminhões que, em comboio, se deslocaram até Brasília em atos antidemocráticos. Quase metade deles – 48,5% – estavam registrados em nome de empresas, o que, segundo a Abin, indica o envolvimento de grupos empresariais no custeio dos acampamentos golpistas. Uma das análises feitas pelos agentes leva em conta a idade dos caminhões – cerca de 65% eram novos e seminovos – o que afastaria indícios de que tratavam-se de profissionais autônomos.
- Relação de empresas ligadas ao garimpo ilegal com os atos de janeiro: Em relatório produzido no início de março, a Abin diz ter conseguido rastrear uma rede de empresas envolvidas em crimes ambientais que tem conexões com o financiamento das manifestações antidemocráticas do dia 8. Dois empresários do Pará ligados ao garimpo ilegal, diz a agência, custearam atos contra o resultado das eleições e um deles estava em Brasília no dia da invasão à sede dos três poderes. A Abin faz conexões de negócios e relações políticas de ambos e registra que os dois alvos do informe defendem a extração de ouro em áreas protegidas e já se reuniram com o ex-presidente Jair Bolsonaro.
- Presença de grupo extremista em Brasília: O mais antigo relatório da Abin encaminhado à CPI data de um monitoramento ainda em 2022 e alerta sobre o risco de violência na posse do presidente Lula. O documento mostra que um grupo de reservistas do Exército atuou diretamente para montar o acampamento golpista em frente ao QG do Exército e diz que um dos líderes do chamado Boinas Vermelhas tem um largo histórico de episódios violentos, como a invasão do Plenário da Câmara dos Deputados em 2016 e a defesa de insurreições civis os moldes da Ucrânia, em 2014, e do Egito. O militar da reserva era um dos acampados da Praça dos Cristais, em frente ao quartel de Brasília.