As menções a Bolsonaro na apuração sobre interferências na PF no caso MEC
VEJA teve acesso ao processo que apura se a cúpula da PF praticou atos que atrapalharam operação sobre desvios de pastores no Ministério da Educação

Em 22 de junho, a Polícia Federal deflagrou a Operação Acesso Pago, que prendeu o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro e pastores evangélicos por suspeitas de terem transformado o MEC em um balcão de negócios para liberação de verbas do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação para prefeituras. As prisões duraram um dia – o TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) reformou a decisão da primeira instância e soltou os investigados –, mas o barulho em torno do caso continuou após o delegado responsável, Bruno Calandrini, levar ao Supremo Tribunal Federal nos meses seguintes duas representações contra membros graduados da PF que, segundo depoimentos de agentes públicos, atuaram deliberadamente para proteger Milton Ribeiro e o pastor Arilton Moura, o que teria atrapalhado as apurações.
Detalhes dos depoimentos, que estão em poder do STF, da Justiça Federal e da Procuradoria-Geral da República, eram até agora desconhecidos, porque o caso tramita em sigilo. A reportagem de VEJA teve acesso ao processo, que traz menções a uma suposta interferência direta do ministro da Justiça, Anderson Torres, e do presidente Jair Bolsonaro (PL) na operação da Polícia Federal. Teria havido, inclusive, pedido expresso para que o nome Acesso Pago fosse mudado para não “vincular o presidente da República”.
O delegado responsável pela investigação dos desvios no MEC enviou ao Supremo duas representações criminais: uma referente à Superintendência da PF em São Paulo e outra referente à Superintendência da PF no Pará, estados onde foram presos, respectivamente, o ex-ministro Milton Ribeiro e o pastor Arilton Moura. O delegado acionou o STF por entender que havia indícios de envolvimento de Bolsonaro.
O caso paraense é o mais cheio de detalhes. Ali, quatro agentes de Estado afirmaram em depoimento que o superintendente local da PF, Fábio Marcelo Andrade, e o delegado de Combate ao Crime Organizado, Ronilson dos Santos, trabalharam – por meio de ligações, mensagens de WhatsApp e e-mails – para remover o pastor Moura, supostamente de forma irregular, do sistema prisional comum para a sede da Polícia Federal, onde nem sequer havia espaço adequado para abrigá-lo. A movimentação ocorreu depois que Moura insinuou que poderia contar o que sabia. Ao ser preso, segundo os relatos, o pastor se gabou várias vezes de ser próximo de Bolsonaro e de frequentar a casa do presidente.
O primeiro relato com suspeitas de interferência, feito por escrito, é do delegado da PF Vinícius Lima, que prendeu o pastor em Ananindeua, no interior do Pará, e o levou inicialmente para a sede da corporação em Belém, de onde ele deveria ser transferido para Brasília, conforme a ordem da Justiça Federal. “Quando Arilton Moura estava preso na Superintendência da PF no Pará, foi-lhe autorizado o direito de falar com sua advogada, momento em que, na presença de outros policiais, Arilton Moura disse que se mexessem com sua ‘menininha’ iria destruir todo mundo. Subentende-se que a sua ‘menininha’ seria sua esposa”, relatou Lima. O episódio foi interpretado como uma ameaça de que o pastor poderia abrir a boca.
“Outro ponto que também chamou a atenção da equipe é o de que Arilton Moura afirmou, por mais de uma vez, ser próximo do presidente da República, o senhor Jair Messias Bolsonaro. Inclusive, disse que tinha o hábito de chamar o presidente apenas pelo seu prenome Jair, que por diversas vezes o visitou na sua casa, levando até açaí do Pará”, relatou o delegado Lima. Como noticiado pela TV Globo na época da operação, o pastor entrou 35 vezes no Palácio do Planalto durante o mandato de Bolsonaro – informação que o governo se recusava a fornecer, mas depois cedeu por orientação da Controladoria-Geral da União. Quando o escândalo do MEC estourou, em março, a Folha de S.Paulo revelou um áudio do então ministro Milton Ribeiro no qual ele dizia priorizar prefeituras cujos pedidos de liberação de verba fossem negociados pelos pastores Arilton Moura e Gilmar Santos (outro preso na Operação Acesso Pago), atendendo a uma solicitação direta de Bolsonaro.
Da Superintendência da PF em Belém, que não tinha local adequado para abrigar o pastor Moura, ele foi levado para uma unidade do sistema prisional do Pará, como costuma ocorrer em casos assim. Foram, então, ouvidas três autoridades que atuavam na Secretaria de Administração Penitenciária do estado. A primeira foi o delegado da Polícia Civil Carlos Silveira. Ele afirmou que, na noite de 22 de junho, recebeu o pedido da PF para tirar o pastor da unidade prisional e respondeu que, para isso, precisava de uma ordem judicial (o que não existia). “Causou surpresa o pedido da Polícia Federal, pois fato como o ora investigado não havia acontecido antes, pedido de retorno de preso”, disse Silveira. Ele orientou a PF a consultar seu superior, o então secretário de Administração Penitenciária, Samuelson Igaky.
Em seu depoimento, Igaky afirmou que recebeu telefonema do chefe da PF no Pará, Fábio Andrade, perguntando sobre a possibilidade de o pastor preso retornar para a sede da Polícia Federal, pois teria sido enviado para o sistema prisional por “equívoco”. “Respondeu que seria necessária uma decisão judicial”, relatou no depoimento, destacando também ter ficado surpreso com o episódio. Já o diretor de Administração Penitenciária do estado, João Batista Silva Barbosa, contou em depoimento que recebeu, na mesma noite de 22 de junho, uma ligação do delegado de Combate ao Crime Organizado, Ronilson dos Santos, pedindo a transferência do pastor Moura para a sede da PF no dia seguinte. Barbosa, então, informou a Santos que a solicitação precisava ser formalizada por e-mail — o que ocorreu. O e-mail, enviado às 22h17, consta do processo. O pastor, de fato, acabou dormindo na unidade prisional naquela noite e foi solto pelo TRF1 no dia seguinte, antes mesmo de ser levado de volta para a Superintendência da PF.
Ouvido novamente, agora em depoimento, o delegado da PF Vinícius Lima (que prendeu Moura em Ananindeua) afirmou que o superintendente no Pará lhe disse que queria que o pastor passasse a noite na PF, não na cadeia. Diante das dificuldades de trazer Moura de volta por falta de ordem judicial, o superintendente lhe “manifestou que era preciso reportar o assunto ao diretor-geral (da PF, Márcio Nunes), ao ministro da Justiça e ao presidente da República”. Esse fato, na visão do delegado Calandrini, que reportou o caso ao STF, demonstra “interferência na condução do inquérito policial, uma vez que o superintendente da PF no Pará não tinha qualquer disposição (legal) sobre o preso e nenhuma participação na condução da investigação, utilizando-se de argumentos dissimulados para satisfazer interesses privados, em tese, a mando do diretor-geral da Polícia Federal, ministro da Justiça e presidente da República”.
Já na representação ao Supremo em que descreve fatos relacionados à Superintendência da PF em São Paulo, Calandrini lança suspeitas sobre seus superiores por terem levado o ex-ministro de Santos (SP), onde foi preso, para a sede do órgão na capital paulista, sem transferi-lo para Brasília, como a Justiça Federal havia determinado. As suspeitas mais contundentes são sobre o delegado que chefia a Coordenação de Inquéritos nos Tribunais Superiores (Cinq), Leopoldo Lacerda. Calandrini sustentou que foi assediado por Lacerda, na véspera da operação, com solicitações para mudar o nome Acesso Pago, “pois a repercussão poderia atingir o presidente da República”. Também foi de Lacerda a ordem para transferir Milton Ribeiro para São Paulo, aparentemente contrariando a decisão judicial.
Calandrini aponta ainda falhas nas justificativas da corporação para ter deixado de transportar o ex-ministro para Brasília, como mandara a Justiça. Além desses fatos, outro já conhecido é uma ligação interceptada na qual Ribeiro antecipou à sua filha que poderia vir a ser alvo de uma operação policial, indicando ter sido avisado por telefone pelo próprio presidente Bolsonaro.
O delegado que acionou o STF com as denúncias está sendo investigado internamente na Polícia Federal, com depoimento marcado para este mês. Uma ala de delegados fez circular um relatório dizendo que a operação sofreu pela “incúria” de Calandrini, e não por interferências indevidas. Suspeitas dessa natureza, no entanto, não são novidade no atual governo. Em 2020, o ex-juiz Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça alegando que Bolsonaro tinha tentado interferir em nomeações na corporação para colocar aliados que lhe passassem informações estratégicas. O inquérito sobre as denúncias de Moro não deu em nada. Hoje, o ex-juiz da Lava Jato, eleito senador, voltou a se aliar ao presidente.