O ex-governador de São Paulo Márcio França (PSB) chegou no começo da noite ao apartamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em São Bernardo do Campo, na região do ABC, no começo de outubro, certo de que levava ao petista uma ideia que poderia impactar a eleição. Na sala de estar, falou amenidades sobre as famílias antes de engatar a conversa que desejava — e que, ao final, durou três horas. Começou dizendo que Lula deveria pensar, na composição de sua chapa, em um “nome da política”, em oposição à ideia circulante de que deveria ser um empresário, como Luiza Trajano, na repetição da estratégia de sucesso adotada em 2002 com José Alencar. Afirmou, ainda, que o ideal era alguém do Sudeste, dada a importância eleitoral da região, e que tivesse características diferentes das de Lula. “Tem um nome que está disponível, que ninguém nunca pensou, mas eu vivo pensando. Acho que o senhor iria gostar porque é um cara diferente: Geraldo Alckmin”, relembrou França a VEJA, deixando escapar uma risada. “Ele não demorou três segundos para falar: ‘Me dá o telefone dele’.”
A ideia brotou na cabeça de França há exatos seis meses, no dia 25 de setembro, quando ele, Alckmin e o ex-ministro Gilberto Kassab se reuniram em Cajamar, na Grande São Paulo. Embora boa parte da conversa tenha girado em torno da estratégia para a eleição ao Palácio dos Bandeirantes, em razão do movimento de João Doria não apoiar Alckmin no PSDB como candidato à sua sucessão, França ficou impressionado com o tom nacional do discurso do então tucano. “Depois de ter sido candidato à Presidência, era claro que o Geraldo havia mudado a chave. Estava pensando no país, não mais no estado”, diz. Alckmin, até ali, ainda se movimentava para tentar voltar ao governo paulista, com apoio de Kassab. Mas, ao imaginá-lo em uma disputa nacional, e sabendo que o seu PSB poderia indicar o vice para Lula, França juntou as peças. Compartilhou a ideia com Fernando Haddad (PT), que imediatamente comprou o pacote: a saída de Alckmin do páreo também ajudava sua pretensão de disputar o Palácio dos Bandeirantes. França, que também está na mesma briga, ficava no lucro também ao tirar o tucano do caminho estadual.
A partir do sinal verde de Lula, a operação se ampliou. Haddad se aproximou de Alckmin por meio de um amigo em comum, o escritor Gabriel Chalita. Eles trocaram telefonemas, mensagens e se encontraram pessoalmente algumas semanas depois, dizendo que a união representaria a reconstrução “do campo democrático” contra o presidente Jair Bolsonaro, em um ensaio do discurso para tentar justificar a aparente incoerência da aliança entre o petista e o ex-tucano, adversários históricos. Ambos, vale lembrar, tiveram embates duríssimos nas eleições de 2006, quando disputaram o segundo turno, vencido por Lula. Mais recentemente, Alckmin engordou o coro de “fora, Dilma” na época do impeachment e não poupou Lula nos escândalos do mensalão e do petrolão. O petista, por sua vez, passou anos criticando e ridicularizando o tucano. A conveniência agora do casamento político deixou esse histórico em segundo plano. Depois de trocarem sinalizações positivas em declarações públicas, Alckmin e Lula ficaram frente a frente em dezembro no jantar organizado pelos advogados do Grupo Prerrogativas, em São Paulo. Mas a conversa definitiva só ocorreu em fevereiro, na casa de Haddad, em Moema, bairro nobre na Zona Sul da cidade, em um encontro entre o anfitrião, Lula, Alckmin e Chalita. Selaram ali o acordo, mesmo sabendo que teriam dificuldades para viabilizá-lo em razão das previsíveis resistências de apoiadores de ambos.
Um passo decisivo para tirar do papel essa (antes improvável) aliança ocorreu na última quarta, 23, na Fundação João Mangabeira, em Brasília, quando Alckmin assinou a filiação ao PSB, após uma longa novela. Ainda sem cravar que será o vice de Lula, o ex-tucano foi aplaudido com entusiasmo pelos socialistas e petistas, cujas bancadas compareceram em peso ao evento. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse que as duas legendas fariam “história”. E, de fato, trata-se de uma ação com profundo simbolismo. Ao atrair um político ligado ao centro, com boa penetração na centro-direita, Lula (que hoje lidera a disputa eleitoral) manda uma mensagem de que não voltará ao Planalto numa encarnação vingativa. Ao mesmo tempo, ele afunila — e dificulta — o surgimento de um nome que possa agregar eleitores da terceira via, gente que não gosta muito dele, mas odeia ainda mais a personalidade atabalhoada, instável e, muitas vezes, antidemocrática de Bolsonaro.
No evento da semana passada, Geraldo Alckmin foi fiel a seu estilo. Em três momentos, justificou a tremenda reviravolta em sua trajetória tentando vender a tese de que o socialismo do PSB e a social-democracia de seu antigo partido “têm uma origem comum” (narrativa difícil de engolir, a começar pelo fato de que o PSB compôs o bloco de oposição ao governo do PSDB de Fernando Henrique Cardoso). Sorridente, chamou os novos aliados de “companheiros e companheiras”, disse se sentir em casa, distribuiu abraços e direcionou declarações para o lado social, como ao criticar o agravamento da fome. Como sempre, saiu pela tangente nas perguntas controversas. Sobre as declarações de Lula de que pretende rever o teto de gastos e a reforma trabalhista — historicamente defendidos por Alckmin —, disse confiar no diálogo e no debate e elogiou a política fiscal do petista na Presidência.
A despeito do interesse mútuo em marcharem juntos, tanto a filiação ao PSB de Alckmin quanto a concretização da aliança desse partido com o PT não vêm ocorrendo de forma tranquila. Embora o acordo nacional seja dado como certo, as siglas travam uma ferrenha batalha nos bastidores para as composições de chapas em estados do Nordeste, Sudeste e Sul, que já foi capaz de minar a proposta de formação de uma federação partidária entre as legendas, mais o PCdoB e o PV. O PT chegou a abrir mão de ter candidatos em Pernambuco e Espírito Santo, mas o impasse em torno de São Paulo mudou a conversa para a formação apenas da coligação nacional, o que só foi equacionado nas últimas semanas. Com a casa arrumada, Alckmin sentiu que poderia ir enfim para o PSB, após ter conversado também com PV, Solidariedade e PSD.
O casamento de Alckmin, PSB, Lula e PT, no entanto, ainda tem arestas a aparar. A principal, claro, está em São Paulo, onde França se recusa a abrir mão da candidatura e a apoiar Haddad, como gostaria Lula. Se os dois forem candidatos (que é o cenário mais provável), cria-se uma óbvia saia-justa para Alckmin: ele pode ficar afastado da disputa ou fazer campanha para França, que foi seu vice no governo entre 2015 e 2018. França argumenta que Haddad dificilmente levará a esquerda à vitória no estado, comandado há mais de duas décadas pelos tucanos, e que um desempenho ruim em São Paulo pode prejudicar Lula. Já os aliados de Haddad destacam que ele lidera com folga as pesquisas e tentam convencer França a disputar vaga no Câmara, onde teria papel de destaque em um governo Lula. Outro entrave envolve a resistência de parte do petismo e da esquerda ao ex-tucano. Obrigados a engolir a contragosto a chapa “lulalckmin”, como ela foi apelidada, esses grupos prometem continuar fazendo barulho, exigindo que Alckmin assuma bandeiras radicais do PT, o que ele certamente não fará.
Não menos problemático promete ser o embarque do ex-tucano na caravana petista. Estranho no ninho na nova turma, Alckmin costuma testar ao limite os nervos dos aliados com seu jeitão “esfinge” — nunca é muito claro nas conversas e custa a tomar uma decisão. Por outro lado, petistas mais entusiasmados encontram vantagens no perfil do ex-tucano. Por ser conservador em política e costumes (é católico fervoroso) e liberal em economia, seus aliados de esquerda defendem a ideia de que ele percorra lugares onde Lula não é bem-vindo, como o Sul e Centro-Oeste, além de focar agendas com o eleitorado evangélico, o empresariado e o agronegócio. Após as eleições, em caso de vitória da chapa, esperam que ele fique com um ministério com o qual possa continuar fazendo a interface com setores sensíveis ao petismo. Agricultura, Meio Ambiente e Indústria e Comércio são três fortes possibilidades.
Ainda que seja uma aliança de ocasião, a união entre o mandachuva petista e um expoente do “antigo PSDB” é vista por alguns políticos e analistas como a concretização de uma aproximação com 28 anos de atraso. Nos anos que antecederam as eleições de 1994, Lula e o então presidente do PSDB, Tasso Jereissati, eram cotados como uma chapa ao Palácio do Planalto, movimento de unificação da centro-esquerda no país que jamais se concretizou. Dali em diante, embora os governos FHC e Lula tenham tido entre si alguma continuidade, com estabilização da moeda e distribuição de renda, os dois partidos estiveram sempre em polos opostos até 2014. O arrebatamento da direita por Bolsonaro em 2018 limou do PSDB, mais precisamente de Alckmin, candidato tucano naquele ano, boa parte do eleitorado.
A concretização do casamento, na opinião de quem acompanha e conhece o jogo do poder, tem contornos simbólicos que vão além de possíveis dividendos eleitorais. “Alckmin não é a liderança arrebatadora que trará milhões de votos, mas é um sinal de que Lula não teria um governo de esquerda, mas bastante moderado”, diz Carlos Melo, professor do Insper. Em certos aspectos, a parceria remonta a complexas obras de engenharia política do passado, como a aliança entre Tancredo Neves, líder do então PMDB, oposição à ditadura, e José Sarney, que era do PDS, partido originado da Arena, na eleição indireta de 1985, e a coligação entre PSDB e PFL, também herdeiro da Arena, em 1994 e 1998. “A aliança com Alckmin lembra a Carta aos Brasileiros — ou aos banqueiros — de 2002. Lula se alia a quem lhe for conveniente, basta lembrar que foi com Haddad à casa de Paulo Maluf pedir-lhe a benção eleitoral”, relembra o cientista político Bolívar Lamounier, referindo-se à eleição paulistana em 2012, vencida pelo petista.
Não menos pragmático, Alckmin, por sua vez, ao fazer as contas, decidiu apostar tudo na aliança quando se viu sem alternativas melhores. Parte da sua decisão, inegavelmente, é motivada pelo ódio que nutre hoje por João Doria, a quem responsabiliza por ter sua tentativa de voltar ao governo paulista em 2022 inviabilizada, sendo preterido pelo vice Rodrigo Garcia. Apesar de ainda manter forte base eleitoral no estado, principalmente no interior, Alckmin sabia que teria poucas chances de medir forças com a máquina do Palácio dos Bandeirantes, que ele conhece tão bem (foi governador por quatro diferentes ocasiões). Numa primeira tentativa de dar o troco em Doria, postergou sua saída do PSDB e trabalhou nos bastidores para tentar minar a candidatura presidencial dele nas prévias tucanas, mas acabou fracassando. Agora, enxerga na chapa com Lula uma nova vingança contra o governador, que também está na disputa pelo Palácio do Planalto, mas, até aqui, com poucos votos.
Enquanto se esforça para executar um “duplo twist carpado” a fim de justificar a guinada radical, Alckmin fica com o ônus de romper não apenas com o PSDB, seu partido por 33 anos, mas com a sua própria trajetória. Inegavelmente, ao fazer esse movimento, pôs também fim à forte relação construída ao longo da carreira com o eleitorado conservador que sempre o apoiou. Na divulgação que fez da filiação ao PSB em suas redes sociais, em meio aos festejos pelo ato, ele recebeu várias queixas de fãs que se sentiram traídos. Em seu movimento de tudo ou nada, o ex-tucano enxerga a oportunidade de se redimir da performance vergonhosa na eleição de 2018, quando teve 4,76% dos votos válidos, o pior resultado do partido. Ao virar fiador de uma candidatura com chances de vitória, ele espera ser reconhecido como alguém que ajudou a salvar a democracia do Brasil. Na teoria, perfeito. Na prática, a equação não é tão simples. Só em outubro, poderemos saber se o casamento entre Lula e Alckmin entrará para a história como uma manobra de mestre — ou será lembrado para sempre como um fracassado “frankenstein” político.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782