Jair Bolsonaro fez carreira no Legislativo com um discurso corporativista, de exaltação à ditadura e de pouco apreço à democracia, sempre embalado numa retórica beligerante. Como chefe do Executivo, desrespeitou a liturgia do cargo, minou de forma sistemática a confiança da população no sistema eleitoral e adotou como estratégia o confronto com as instituições, a fim de desacreditá-las e, assim, facilitar o seu projeto de poder. Em quatro anos de mandato, o Supremo Tribunal Federal (STF) se tornou seu alvo preferencial, e a insinuação de uma possível intervenção militar foi uma constante em suas manifestações públicas. Por mais que repetisse a ladainha de que sempre jogou “dentro das quatro linhas da Constituição”, o capitão contribuiu com sua postura para que parte de seus apoiadores defendesse um golpe. A ruptura sonhada pela grei mais radical não aconteceu, mas os ataques à democracia se consumaram de forma inédita desde a redemocratização — não pelas mãos de um cabo e um soldado, o que bastaria para fechar o STF, segundo o deputado Eduardo Bolsonaro, mas pela violência de setores de extrema direita insuflados por ações e omissões do ex-presidente da República.
“Quem decide meu futuro, para onde eu vou, são vocês. Quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês.”
Jair Bolsonaro, dezembro de 2022, falando a apoiadores no Palácio da Alvorada
A responsabilização de autoridades e agentes privados que contribuíram para a invasão e a depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e da sede do Supremo ainda está em fase inicial e depende de investigação em inquérito conduzido pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, desafeto do clã Bolsonaro. Não se sabe se o ex-presidente enfrentará consequências na seara jurídica, mas existem elementos que merecem ser analisados. A responsabilidade de Bolsonaro no lamentável episódio vai levar em consideração suas ações, falas e mensagens que teriam moldado os discursos contra as instituições, mobilizado as milícias radicais e, finalmente, indicado o caminho a ser seguido caso ele perdesse a eleição. De acordo com seus adversários, o comando subliminar para o ataque já estava dado pelo conjunto da obra do ex-presidente nos últimos quatro anos, como bem observou Isabela Kalil, doutora em antropologia e coordenadora do Observatório da Extrema Direita, em entrevista ao jornal O Globo. Sua (pouca) comunicação após a derrota na última eleição também pode ter reforçado a temática golpista dos criminosos do dia 8 de janeiro.
Em sua primeira manifestação após a vitória de Lula, Bolsonaro posou de vítima de uma conspiração e não repreendeu seus seguidores que interditaram rodovias para protestar contra o resultado da eleição. “Os atuais movimentos populares são frutos de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”, declarou. Mas a coisa foi piorando. Enquanto seus apoiadores mais radicais montavam acampamentos nas imediações de quartéis do Exército pedindo uma intervenção que impedisse a posse de Lula, o ex-presidente não fez um gesto para desmobilizar a turba e, nas poucas vezes em que se posicionou publicamente, foi com o objetivo de mantê-la mobilizada. Preste atenção na declaração dada em dezembro de 2022: “Quem decide meu futuro, para onde eu vou, são vocês. Quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês”. O general Braga Netto, vice na chapa derrotada, seguiu, aliás, o mesmo e enigmático caminho. “Vocês não percam a fé. É só o que eu posso falar para vocês agora. Tem que dar um tempo.” Que recado eles quiseram dar com essas mensagens? As Forças Armadas guiadas pelos radicais? Para fazer o quê? São perguntas que merecem respostas.
“Vocês não percam a fé. É só o que eu posso falar para vocês agora. Tem que dar um tempo.”
General Braga Netto, novembro de 2022, comentando o resultado das eleições a apoiadores no Palácio da Alvorada
Na maior parte de seu mandato, Bolsonaro esteve em guerra com o Supremo, que tomou decisões que lhe desagradaram e ainda toca investigações envolvendo integrantes de sua família. A rigor, ele nunca escondeu o confronto aberto com a instância máxima do Poder Judiciário. No início das rusgas institucionais, um ministro de Bolsonaro declarou, em tom de intimidação, que o Supremo não deveria esticar a corda, sob pena de rompê-la. Mais tarde, o próprio Bolsonaro ameaçou intervir se o ministro Alexandre de Moraes continuasse, de acordo com ele, com atitudes arbitrárias e decisões inconstitucionais. “Acabou, p…”, gritou certa vez, com seu linguajar habitual. Em meio à tensão, o deputado Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, chegou a afirmar que não havia dúvida sobre se ocorreria uma ruptura, mas apenas quando esta seria levada a cabo. Semeada de cima para baixo desde o início, a tese da intervenção no Supremo floresceu entre os bolsonaristas, que adotaram o mantra “Supremo é o povo” e passaram a hostilizar ministros do tribunal nas ruas. A tensão chegou a níveis tão alarmantes que, no feriado de 7 de Setembro do ano passado, a Corte até preparou um esquema especial de segurança por temer uma tentativa de invasão. A tragédia acabou acontecendo agora.
Politicamente, a vinculação de Bolsonaro com os extremistas já está sendo apontada pelos seus rivais e o dano de imagem pode ser colossal. “Esse genocida não só provocou isso como, quem sabe, ainda está estimulando pelas redes sociais lá de Miami, onde foi descansar”, disse o presidente Lula no domingo 8, após assistir pela televisão à quebradeira promovida, segundo ele, por “fascistas” e “fanáticos”. “Eles querem é golpe, e golpe não vai ter”, acrescentou um dia depois, ao receber governadores para tratar do assunto. Entre os presentes estavam até os oposicionistas, como Tarcísio de Freitas, de São Paulo. Ex-ministro de Bolsonaro, eleito graças ao apoio do ex-presidente, Freitas repudiou na reunião os ataques e elogiou a iniciativa de Lula de reunir os governadores, num sinal claro de quem saiu ganhando — e perdendo — politicamente com a ação dos extremistas. O próprio PL, partido de Bolsonaro, detectou numa pesquisa para consumo interno desgaste na imagem do capitão, que decidiu antecipar sua volta dos Estados Unidos para tentar atenuar os danos. “Esses caras, dentro da burrice coletiva que dominou o movimento, deram o que o Lula talvez ainda não tivesse na plenitude, que é a credibilidade e a legitimidade. O Lula conseguiu reunir os outros dois presidentes de poderes e os governadores, e todos colocaram a sua união em torno do governo, como tem de ser”, disse a VEJA um observador privilegiado da cena política, com atuação na Praça dos Três Poderes.
“Eu até entendo que tem uma postura mais moderada para não tentar chegar ao momento de ruptura, um momento de cisão. Falando abertamente, não é mais uma opinião de se, mas de ‘quando’ isso vai ocorrer.”
Deputado Eduardo Bolsonaro, em maio de 2020, em reação a uma decisão do ministro Alexandre de Moraes
Confrontado com os dados, Bolsonaro até tentou se desvincular do atentado dos radicais, mas, como em episódios anteriores, não repreendeu de forma enérgica os golpistas nem fez qualquer gesto a favor da pacificação nacional, o que seria natural da parte de um autêntico democrata. “Manifestações pacíficas, na forma da lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios públicos, como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra”, escreveu o ex-presidente numa rede social. “No mais, repudio as acusações, sem provas, a mim atribuídas por parte do atual chefe do Executivo”. A questão aqui não é a ideologia ou uma disputa política. Crimes foram cometidos — e só uma investigação séria mostrará o grau de responsabilidade de Bolsonaro e seu círculo mais próximo nos ataques dos terroristas à Praça dos Três Poderes. O fato é que, independentemente de quem ganhe uma eleição, o país precisa de paz e de fortalecimento dos mecanismos de defesa de sua ainda jovem democracia. Para alcançar esses objetivos, é fundamental identificar e punir, além da massa de manobra composta de vândalos e arruaceiros, todos os que contribuíram para espetáculo de horror em Brasília. Todos, sem exceção.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824