A sucessão municipal de 2020 deve ser uma das mais disputadas da história. Além de a eleição de vereadores e prefeitos ser considerada pelos partidos como estratégica para o pleito de 2022, em que serão escolhidos governadores e o presidente da República, o nível de polarização ideológica subiu após a volta às ruas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No Recife, porém, o principal enfrentamento por ora se dá entre esquerda e esquerda e dentro da mesma família: um duelo entre dois herdeiros do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, uma das principais lideranças históricas de esquerda do estado e do país — foi governador três vezes, preso, cassado e exilado pela ditadura. Na disputa em questão, de um lado, pelo PT, está a deputada federal Marília Arraes, de 35 anos, neta do patriarca. Do outro, pelo PSB, o também deputado federal João Campos, de 26 anos, bisneto de Arraes e filho do ex-governador Eduardo Campos, morto em acidente aéreo em 2014, quando buscava a Presidência.
Marília e João são primos de segundo grau, com pouco contato, parte disso pela diferença de idade entre os dois. Os prefeituráveis conviveram com o patriarca Arraes, morto em 2005, aos 88 anos — ela tinha 21 anos e ele, 11. Marília é advogada e João é engenheiro, ambos formados pela Universidade Federal de Pernambuco. A origem política também foi semelhante. A dupla iniciou a carreira no PSB, partido para o qual Arraes migrou em 1990 e no qual Eduardo Campos construiu sua trajetória. Por enquanto, Marília e João não assumem a pré-candidatura. Contudo, no fim de novembro, uma troca de declarações mostrou que a disputa já foi deflagrada no clã. Indagado sobre a pretensão do PT de lançar nomes em todas as capitais, João disse que a prioridade da esquerda deveria ser a união contra o governo Jair Bolsonaro e disparou: “O PT vai ter de tomar uma decisão, e que arque com as consequências”. No mesmo dia, Marília rebateu o primo, chamando de “lamentável” sua postura. Segundo ela, o deputado tentou intimidar o PT de forma autoritária e imatura.
O racha entre os herdeiros de Arraes começou a se configurar em 2013. Marília estava em seu segundo mandato como vereadora pelo PSB quando entrou em rota de colisão com a cúpula do partido, do qual saiu em 2016. O motivo teria sido a falta de apoio do governador à sua pretensão de se lançar ao cargo de deputada federal — Eduardo Campos preferiu apostar em Felipe Carreras, então deputado estadual e casado com a sobrinha de sua esposa, Renata. Carreras se elegeu, mas acabou execrado pela família depois de se separar e assumir um romance com a atriz e apresentadora Amanda Richter. Marília diz que isso é fofoca e uma tentativa de desqualificá-la politicamente. “Deixei o PSB porque ele claramente caminhava para a direita. E eu estava certa. Apoiaram o Aécio Neves em 2014 e votaram pelo impeachment da Dilma em 2016”, afirma. Em 2018, já no PT, ela teve de engolir a seco a retirada de sua candidatura ao governo pernambucano. A cúpula petista decidiu ficar fora da disputa em troca do apoio do PSB à reeleição de Fernando Pimentel, em Minas Gerais, e à candidatura presidencial de Fernando Haddad. “Em 2018 havia uma estratégia nacional do partido que justificava a aliança com o PSB, mas não enxergo o mesmo cenário para 2020”, explica Marília. De fato, todos os sinais de Lula vão no sentido de que o PT tenha candidato próprio nas capitais. Recife, aliás, foi o destino da primeira viagem do ex-presidente após deixar a prisão. Almoçou com João e jantou com Marília. “Não discutimos eleições”, afirma o deputado. Quem participou do jantar com Marília garante que Lula a chamou de “minha prefeita”. Ela, porém, terá de enfrentar o fogo amigo do PT em seu estado. O senador petista Humberto Costa, por exemplo, está mais interessado em manter a aliança com o PSB, pela qual se elegeu duas vezes ao Senado. “Defendo a manutenção do partido na Frente Popular. Mas ainda vamos começar essa discussão”, diz.
No PSB, que governa Pernambuco desde 2007 e o Recife desde 2013, a candidatura de João é dada como certa. Foi o deputado mais votado do estado, com mais de 70 000 votos na capital — Marília obteve 54 193. Ao chamá-lo de imaturo nos últimos dias, ela mostrou o tom do discurso contra o primo. O PSB tem a resposta na ponta da língua: vai dizer que João se formou engenheiro aos 23 anos, trabalhou no setor privado, foi chefe de gabinete do governador Paulo Câmara (PSB) e não seria nenhum problema se tornar prefeito aos 27 — cita Ciro Gomes, que assumiu Fortaleza aos 31, e Cássio Cunha Lima, de Campina Grande, eleito aos 25. Protagonista da política no estado há décadas, o clã Arraes entrará pela primeira vez dividido na disputa das eleições.
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665