Após derrota nas eleições, governo tenta retocar imagem de olho em 2026
Gestão de Lula prioriza a área de segurança pública e se aproxima dos evangélicos mirando a próxima eleição
Dias antes do primeiro turno da eleição deste ano, José Dirceu disse numa entrevista que todo governo precisa de ajustes e que Lula tem experiência e capacidade de sobra para fazer as mudanças necessárias. Chefe da Casa Civil no primeiro mandato do petista, o ex-ministro previu na ocasião a derrota da esquerda nas urnas e defendeu “aperfeiçoamentos” na gestão federal diante da nova realidade mundial e do fortalecimento da direita no Brasil. Os tempos mudaram, assim como as demandas da população, as prioridades nacionais e até as arenas nas quais os embates políticos são travados. Seria urgente, portanto, atualizar bandeiras, renovar quadros, ampliar canais de diálogo e aprimorar estratégias de comunicação. O diagnóstico de Dirceu parece um tanto óbvio, mas foi reforçado porque, até então, não sensibilizava o principal destinatário de sua mensagem — o presidente da República, criticado por aliados por administrar o país como se este fosse o mesmo de duas décadas atrás. Quando era cobrado a atualizar o seu programa, Lula costumava rechaçar sempre da mesma forma: “Ganhe uma eleição presidencial que a gente conversa”. A situação agora é diferente.
Com o fracasso da esquerda na disputa municipal, o fortalecimento dos partidos de centro e a demonstração de vitalidade da direita, o presidente resolveu fazer alguns gestos para tentar melhorar os resultados e a imagem de sua administração. Um deles foi feito na área de segurança pública, usada pelos bolsonaristas para desgastar o governo e a esquerda. Na quinta-feira 31, Lula recebeu governadores para tratar de uma proposta de emenda constitucional (PEC) que era prometida havia meses, mas que tinha ficado em banho-maria em razão de uma disputa interna entre os ministros da Justiça, Ricardo Lewandowski, e Casa Civil, Rui Costa. O texto só deixou os escaninhos da burocracia e foi levado à mesa de negociação — exatamente quatro dias após o segundo turno — porque o presidente finalmente entendeu que era chegada a hora de reagir. Desenhada pela equipe de Lewandowski, a PEC dá à União o poder de estabelecer diretrizes gerais na política de segurança, amplia a área de atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e fortalece o papel da Polícia Federal no combate a organizações criminosas e milícias.
O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), elogiou a iniciativa e afirmou que a primeira impressão sobre a proposta foi positiva. Apesar dessa declaração, o caminho até a aprovação será longo e tortuoso. Integrantes da chamada bancada da bala anunciaram a intenção de votar um projeto alternativo, redigido por eles. Já alguns governadores demonstraram preocupação com a possibilidade de o governo federal acabar com a autonomia dos estados em determinados assuntos de segurança. Em tese, esse confronto de posições divergentes pode servir de motor para o aperfeiçoamento do texto. O problema é que boa parte dos atores envolvidos na questão está mais preocupada com o impacto eleitoral do que com o mérito da PEC. Políticos de direita não querem abrir mão do discurso, de forte apelo popular, de que jogam duro contra os criminosos, enquanto Lula e o PT “defendem bandidos”, como gostam de repetir nas redes sociais e nos plenários da Câmara e do Senado. Esse pano de fundo eleitoral, que pode atrapalhar o resultado final da proposta, ficou claro durante a reunião do presidente com os governadores.
No encontro, Ronaldo Caiado, pré-candidato à Presidência pelo União Brasil, reclamou de uma suposta tentativa de usurpação de prerrogativa dos governadores e afirmou ter derrotado o crime organizado em Goiás. Lula recorreu à ironia na réplica: “Tive a oportunidade hoje de conhecer o único estado que não tem problema de segurança”. O debate mal começou — e começou mal. O presidente respondeu porque sabe onde o calo aperta. Desde o início de seu terceiro mandato, o governo e o PT procuram um discurso e uma proposta para reagir à direita no tema da segurança pública. A PEC é uma tentativa dos governistas de achar um norte e evitar que a esquerda perca a disputa política por não ter ou não saber o que dizer. Ou por não ter coragem de defender o que realmente pensa, como ocorreu quando da votação do projeto que endureceu as regras sobre as saidinhas de presos. “A PEC representa uma tentativa do governo de mostrar protagonismo no tema da segurança pública, em que o governo deixa muito a desejar. Embora seja algo ainda tênue diante dos desafios da área, a proposta apresenta tópicos que precisam ser tratados”, diz Rafael Alcadipani, professor da FGV e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “A PEC não terá uma vida fácil no Congresso, pois a direita não quer oferecer protagonismo para a esquerda num tema que lhe é tão caro.”
Outros movimentos do presidente foram feitos de olho nos humores do eleitorado. Entre eles, uma nova tentativa de aproximação com os evangélicos. Nesse segmento, a reprovação ao governo é de 55%, 14 pontos a mais do que a média, de 41%, segundo pesquisa Genial/Quaest. Além da fragilidade na base dos fiéis, Lula enfrenta dificuldades no topo, especialmente com líderes evangélicos que se aproximaram do ex-presidente Jair Bolsonaro, como o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. “Lula pode inventar o que quiser, Minha Casa, Minha Vida e Bolsa Família com rosto de evangélicos, que esse movimento não vai atingir nem 1% dos fiéis”, diz Malafaia. Não resta ao presidente outra alternativa senão tentar, já que os evangélicos correspondem a cerca de 30% da população brasileira. E ele tentou mais uma vez entre o primeiro e o segundo turno da eleição municipal, quando organizou uma cerimônia no Palácio do Planalto para sancionar a lei que instituiu o Dia Nacional da Música Gospel. A solenidade teve como convidado especial o deputado federal Otoni de Paula (MDB-RJ), que é pastor — até pouco tempo atrás ele cerrava fileiras com Bolsonaro e chegou a ser investigado no inquérito das fake news.
Em sintonia fina com o governo, o parlamentar declarou que os evangélicos não têm “dono” e que estão “entre os brasileiros mais contemplados” por suas políticas sociais. Numa só pregação, tentou afastá-los do ex-presidente e aproximá-los de seu sucessor. “A minha presença neste evento deu tanta repercussão porque sou um deputado historicamente ligado ao bolsonarismo. A motivação é tentar trazer a Igreja de volta ao seu real propósito. Ela havia sido sequestrada pela política, perdendo a sua capacidade de dialogar”, declarou na solenidade. A conversão do deputado ocorreu com a ajuda do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), reeleito em outubro com o apoio de Lula. “O presidente precisa fazer gestos, não são necessariamente ações de governo, são gestos pessoais mesmo, em direção a essas lideranças evangélicas”, afirma Paes. Ministros também têm tentado reduzir a distância entre o presidente e o segmento. Titular da Advocacia-Geral da União (AGU), o evangélico Jorge Messias alega que o objetivo não é substituir Bolsonaro por Lula no púlpito, mas despolitizar a Igreja e devolvê-la a Jesus Cristo.
O núcleo duro do governo, no entanto, quer conquistar a simpatia da base dos fiéis, ressaltando programas oficiais que beneficiam os mais pobres e a classe média. “Pelo lado social, o presidente tem chances de aumentar o eleitorado evangélico. Todos os movimentos que o governo vem fazendo em termos de atendimento à vulnerabilidade social e alimentar têm a ver com essas classes sociais, mas o governo precisa se comunicar melhor”, declara o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM), líder da bancada evangélica. Melhorar a comunicação, em todas as áreas, é uma das prioridades do Palácio do Planalto. Para tentar facilitar a corte aos evangélicos, a Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, lançará um curso específico para preparar integrantes do partido a lidar com esse público. As aulas serão uma espécie de briefing sobre, por exemplo, o que pensam os evangélicos, como enxergam a política e as diferenças entre as denominações da religião. “As políticas públicas devem ser para todos, mas é preciso ter uma comunicação melhor com esse público, falar a língua dele, explicar que os programas sociais, por exemplo, beneficiam a família, um dos pilares dos evangélicos”, observa o teólogo e pastor progressista Sergio Dusilek.
Desde antes da eleição municipal, Lula era aconselhado a fazer ajustes em sua gestão, cuja avaliação positiva está estável, mas num nível próximo ao da avaliação negativa. Segundo pesquisa Datafolha divulgada em outubro, 36% aprovam o governo e 32% reprovam. Os números são parecidos aos de Bolsonaro durante o mesmo período de mandato. Antigos conselheiros do presidente alegam que a composição do ministério não reflete a frente ampla montada para derrotar o ex-presidente. Por isso, ponderam que o ideal seria Lula aumentar os espaços de aliados do centro, como forma de tentar oxigenar a equipe, fortalecer a base aliada no Congresso e amarrar as legendas do Centrão a sua eventual candidatura à reeleição. O desafio é convencer o mandatário, o PT e alguns aliados a fazerem essa e outras guinadas. O debate promete ser intenso. Tão intenso como ocorre nos principais dilemas do governo. Um deles, relacionado à agenda internacional, diz respeito à Venezuela. No ano passado, Lula fortaleceu o ditador Nicolás Maduro ao recebê-lo com pompa e circunstância em Brasília, quando a oposição no país vizinho já alertava para a possibilidade de fraude na eleição venezuelana deste ano. Com a fraude consumada, o governo brasileiro reagiu de forma cautelosa, sob a alegação de que precisava preservar seu papel de líder regional. Maduro continuou no poder sob aplausos do PT, e Lula seguiu com um desgaste tremendo no colo. Atacado depois por Maduro, reagiu tardiamente e vetou a entrada da Venezuela como parceira no Brics. A decisão deixou de lado a afinidade ideológica e finalmente levou em consideração a recomendação dos profissionais da chancelaria.
A dubiedade do presidente se estende para outros campos, alguns deles minados. Com quase dois anos de mandato, Lula ainda não decidiu o nível de comprometimento que tem com o equilíbrio das contas públicas. Com a escalada recente do dólar, ele decidiu abraçar o plano dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, desenhado para conter a expansão das despesas obrigatórias e da dívida pública. A questão agora é ver a sua dimensão (leia a matéria na pág. 48) e execução. Há dúvida sobre qual caminho seguir, que medidas adotar, com que intensidade — e não apenas na área econômica. Experiente e habilidoso, o presidente ensaia uma reação num momento em que a esquerda enfrenta desgaste — e a direita e os conservadores ganham terreno. A situação, que já era complicada, tornou-se ainda mais desafiadora com a vitória de Donald Trump na eleição americana. A lista de adversários de Lula em 2026 deu uma encorpada considerável. Dependendo do desgaste, simples retoques podem ser insuficientes para recuperar um quadro que já foi luminoso.
Colaboraram Hugo Marques e Lucas Mathias
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918