O deputado federal Miguel Lombardi (PL-SP) tem em seu gabinete um funcionário contratado para fazer alguma coisa que ele não sabe direito o que é. Jucivaldo Salazar Pereira, de 79 anos, técnico de laboratório, trabalha lá desde 2015, ganha 12 000 reais por mês, mas nem sempre comparece ao Congresso. Perguntado sobre o servidor, o parlamentar responde: “O senhorzinho que ajuda eu? Faz tempo que ele está comigo”. Mas qual é exatamente a atividade que ele desempenha? “Aí você precisa falar com o meu chefe de gabinete. Eu sei que ele entrega documentação externa, vai no partido, vem e tal”, explicou o deputado — situação curiosa quando se sabe que o tal “senhorzinho” em questão, que aparece de vez em quando na Câmara e executa tarefas que mais se assemelham às de um office boy, também é ninguém menos que o tesoureiro do PL, o responsável pela gestão dos mais de 300 milhões de reais do fundo que vai financiar as campanhas de mais de 1 600 candidatos em todo o país, incluindo a da principal e maior estrela do partido: o presidente Jair Bolsonaro.
É estranho. Cabe aos tesoureiros dos partidos a função de ordenar a distribuição dos fundos públicos e prestar contas à Justiça sobre os gastos. A tarefa é delicada, atende interesses muitas vezes inconfessáveis e, por isso mesmo, tradicionalmente sempre foi delegada a pessoas qualificadas e da estrita confiança dos dirigentes do partido. A tesouraria também é um foco de escândalos monumentais. Em 1992, Paulo César Farias, então tesoureiro do PRN, o partido do então presidente Fernando Collor, foi a mola mestra do primeiro impeachment da República. Delúbio Soares, tesoureiro do PT, foi flagrado no epicentro do mensalão durante o governo Lula. João Vaccari Neto, sucessor de Delúbio, ficou famoso pelas mochilas de dinheiro roubado que costumava carregar depois de visitar os empreiteiros envolvidos no petrolão. Os três eram burocratas respeitados em seus respectivos partidos, especialistas na arte das finanças e talhados para executar missões políticas heterodoxas. Os três foram presos e condenados por corrupção. O cargo embute altíssimos riscos para seus ocupantes e é por isso que o perfil de Jucivaldo chama atenção.
VEJA tentou localizá-lo durante dias. No escritório onde ele está oficialmente lotado, ninguém soube informar ao certo nem quando nem onde ele se encontrava. O chefe de gabinete de Lombardi, aquele que, segundo o deputado, iria “falar” sobre as atividades do funcionário, decidiu não falar e, em nota, disse apenas que ele presta serviço de “secretaria, assistência e assessoramento”. O PL pediu que as perguntas fossem encaminhadas por escrito, mas não respondeu até o fechamento da edição. Coube ao vice-presidente do partido, deputado Capitão Augusto (SP), a declaração mais sincera sobre o que Jucivaldo faz: “Não sei”. Funcionário aposentado da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, o pouco que se revela sobre o guardião da chave do cofre dos liberais é que ele tem uma “longa” história dentro do partido, mas uma história com pouquíssimos registros. Em 2006, no ápice do mensalão e já na condição de tesoureiro, ele disputou uma vaga na Câmara Legislativa do DF. Teve pouco mais de 500 votos. Portador de um diploma de ensino médio, em 2014 foi condenado pelo Tribunal de Contas da União a pagar uma multa por irregularidades na prestação de contas do partido. Ossos do ofício.
Nas eleições deste ano, os tesoureiros vão gerenciar uma verba de 4,9 bilhões de reais do fundo público criado para financiar as campanhas políticas. Além desse montante, serão movimentados recursos oriundos de doações de pessoas físicas e do Fundo Partidário, uma verba dos cofres públicos que é repassada mensalmente às legendas. Dos 32 partidos que apresentaram candidatos a cargo eletivo, o Novo foi o único que recusou o uso da verba. Até mesmo as agremiações nanicas e sem representação no Congresso Nacional, como o PCB e o PCO, têm direito a uma fatia desses recursos. Mas são os grandes partidos que ficam com a maior parte, verdadeiras fortunas. O União Brasil, por exemplo, que tem a senadora Soraya Thronicke como candidata à presidente da República, tem à disposição 758 milhões de reais para financiar a campanha de seus candidatos. Em tese, administrar o bom uso de toda essa dinheirama não seria uma tarefa recomendável para amadores. Ao que parece, no entanto, isso se tornou um estratagema dos partidos (veja o quadro abaixo).
Depois de protagonizar os escândalos, o PT dividiu seu departamento financeiro, separando a tesouraria do partido da tesouraria de campanha do candidato a presidente, embora a maior parte do dinheiro que abastece os dois caixas tenha a mesma origem. Hoje, quem ocupa o cargo que já pertenceu a Delúbio Soares e a João Vaccari é a professora de filosofia Gleide Andrade. Ligada ao ex-governador Fernando Pimentel, com quem já trabalhou na prefeitura de Belo Horizonte, ela é descrita pelos colegas como uma burocrata “linha-dura”. “Ela faz tudo direitinho e tem um caráter muito forte — e essa área não pode ser para gente ‘maria vai com as outras’ ”, afirmou um dos integrantes da coordenação de campanha de Lula. Recentemente, Gleide se desentendeu com a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, porque, nas palavras de uma liderança petista, “a conta não estava fechando”. Uma acusou a outra de tentar favorecer determinadas candidaturas. Com uma verba de quase 500 milhões de reais, os petistas reclamam de falta de dinheiro. A prioridade do partido é a campanha do ex-presidente Lula, para a qual já estão reservados 132 milhões, mas o PT sabe a importância de eleger uma bancada imponente no Congresso. Por causa disso e à revelia da tesouraria, dirigentes têm tentado adiar a quitação de compromissos financeiros para depois das eleições, deixando no horizonte dos credores a possibilidade de futuros dividendos — solução que lá na frente pode se transformar num problemão para Gleide Andrade.
No PL de Bolsonaro, a situação não é muito diferente. O presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, avisou aos candidatos que disputam a eleição que os recursos (268 milhões de reais do fundo e mais 57 milhões que estavam guardados no cofre) acabaram. “A dificuldade é muito grande. Se nós não tivermos doações, vamos passar aperto”, disse ele em um vídeo em que pede colaboração aos apoiadores. Costa Neto, é bom lembrar, foi condenado a sete anos de cadeia por corrupção. No governo Lula, ele era um dos parceiros do PT no esquema clandestino de desvio de dinheiro dos cofres públicos — o notório escândalo do mensalão. O ex-deputado cumpriu a pena, voltou a comandar o partido depois de solto, se aliou a Jair Bolsonaro e continua dando as cartas na área financeira, como sempre fez. A diferença agora é que, se alguma coisa der errado, Valdemar pode acionar Jucivaldo, o tesoureiro oficial, e exigir do “senhorzinho” explicações sobre o que aconteceu.
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807