André Mendonça enfrenta novo obstáculo na fase decisiva rumo ao STF
Elementos relacionados a um processo por improbidade administrativa que envolve sua gestão na AGU ameaçam a caminhada ao Supremo
Vários desafios já foram vencidos por André Mendonça em uma especialmente espinhosa caminhada para tentar ocupar a vaga em aberto no STF. Mesmo contando com o apoio de Bolsonaro e preenchendo o principal pré-requisito estabelecido pelo presidente para a função, ele não teve vida fácil. Advogado-geral da União e também pastor presbiteriano, Mendonça realizou um périplo por templos em busca da unção de líderes pela sua condição de “terrivelmente evangélico”. Em paralelo, iniciou o corpo a corpo com os senadores. Esse movimento aumentou de intensidade nos últimos dias devido à proximidade da realização da sabatina a que será submetido na casa legislativa (provavelmente, em agosto). A tarefa é dura, pois o Senado tem a oposição bem articulada e será preciso conquistar ali os 41 votos necessários à sua confirmação no cargo. Nessa etapa delicada do percurso, qualquer problema pode ser fatal.
Embora Mendonça preencha plenamente uma das principais condições exigidas de fato para ocupar uma das cadeiras do STF (a de comprovado saber jurídico), o estreito alinhamento com Bolsonaro quando ocupou o Ministério da Justiça deverá ser bastante questionado. Na época, foi acusado de perseguir opositores do presidente usando a Lei de Segurança Nacional e de recorrer à PF para investigar por calúnia e injúria adversários do capitão. Outra dor de cabeça pode vir a partir de questionamentos sobre um contrato que deslanchou sob sua primeira gestão na Advocacia-Geral da União (AGU). Mesmo contra a recomendação do Ministério Público Federal (MPF), a AGU fechou um acordo sem licitação com um escritório de advogados suíço a um custo que pode chegar a 68,7 milhões de reais por quatro anos de serviços. O caso gerou uma apuração por improbidade administrativa em curso na Procuradoria da República no Distrito Federal sobre os gestores da AGU envolvidos direta ou indiretamente na contratação — o que pode respingar em Mendonça.
O imbróglio começou em 2017, quando o MPF manifestou o desejo de ter advogados parceiros no exterior para ajudar na recuperação de valores desviados do Brasil. O pedido ficou parado por dois anos, até que a AGU, sob o comando de Mendonça, resolveu se mexer. Depois de analisar algumas possibilidades no mercado, o órgão consultou o MPF sobre a contratação do Lalive, sediado em Genebra, questionando se havia um conflito de interesses em um ponto espinhoso: as relações do escritório suíço com Rodrigo Tacla Duran, advogado na mira da Lava-Jato em Curitiba. Havia a suspeita na época de que ele havia contratado o mesmo Lalive para defendê-lo.
Não era um problema qualquer. Como Tacla Duran era investigado pela força-tarefa, o subprocurador-geral da República Hindemburgo Chateaubriand Filho direcionou a consulta à equipe da Lava-Jato. A resposta: havia, sim, “nítido conflito de interesse”, por Tacla Duran ter sido controlador de dezesseis contas na Suíça. O Lalive ia ter de atuar contra ele em algum momento. Assim, em 6 de dezembro de 2019, Chateaubriand Filho enviou ofício à AGU, ainda na gestão de Mendonça, comunicando que o MPF não tinha mais interesse na contratação da banca suíça, justamente pelo conflito de interesses.
De forma surpreendente, a AGU ignorou o alerta e seguiu com o negócio. Em abril de 2020, Mendonça deixou o órgão para assumir o Ministério da Justiça. Coube à gestão de seu sucessor, José Levi, concluir a negociação em 29 de dezembro. Já com o contrato assinado, em 3 de fevereiro deste ano, a AGU pediu uma audiência com Chateaubriand Filho e ofertou ao MPF os serviços do Lalive. O subprocurador-geral ficou espantado. Na mesma data da reunião com a AGU, redigiu um ofício com termos duros solicitando investigação à 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, que cuida do combate à corrupção. “Cabe averiguar a contratação de serviços advocatícios de escritório estrangeiro envolvendo valor elevado, cuja atuação conflita com a do MPF e que não poderia ser delegada pela AGU, em especial quando o MPF manifestou oficialmente sua discordância”, escreveu. Outro ponto que causou estranheza é que o Lalive foi contratado para repatriar recursos, enquanto sua especialidade é o trabalho de arbitragem.
A história ficou ainda mais enrolada com um fato novo surgido nas últimas semanas. O advogado Tacla Duran, que mora no exterior e trabalhou para empreiteiras como a Odebrecht, avançou na negociação de um acordo de delação com a PGR no qual promete entregar provas de que autoridades brasileiras se desviaram de suas funções a pretexto de combater a corrupção. Cultuado por críticos da Lava-Jato e visto com descrédito por setores alinhados à operação, o colaborador dedica o anexo 28 da sua delação ao Lalive. A versão de Tacla Duran apimenta o imbróglio: ele teria recebido uma oferta de suborno de um sócio do Lalive para que deixasse a clientela do escritório e não denunciasse o rolo à Justiça.
O objetivo da negociata seria viabilizar o contrato com a AGU, que vinha sendo questionado justamente pela ligação dele com o escritório. Depois de receber a tal proposta, não fica claro se Tacla aceitou ou não o dinheiro para sair do caminho. O fato é que ele rompeu com o Lalive, notificando na sequência o escritório para que não atue contra ele. Embora soem um tanto quanto rocambolescas, as afirmações do delator são corroboradas por trocas de e-mail e uma imagem no LinkedIn na qual o agente do suposto suborno aparece como associado do Lalive até janeiro de 2021.
Procurado por VEJA, o escritório suíço reiterou o que disse à AGU: “Lalive nunca representou Tacla Duran. Não podemos comentar outros aspectos”. Para a AGU, a responsabilidade sobre informações de clientes é exclusiva do Lalive. “Se o escritório aparecer publicamente em processo representando clientes em situação de conflito de interesses com a República, os fatos poderão ser analisados para fins de rescisão contratual, inclusive com apuração de responsabilização civil, administrativa e/ou criminal”, diz o órgão. André Mendonça, por sua vez, ressalta que o contrato foi assinado na gestão de seu sucessor e que não tem dúvidas de que a AGU agiu dentro da legalidade: “Caso haja indicação de que o escritório mentiu ou omitiu informação, todas as medidas cabíveis serão tomadas, inclusive penais, e a possível restituição dos valores já pagos”, afirmou à VEJA. Mendonça voltou à AGU em março deste ano, depois de uma breve passagem à frente do Ministério da Justiça. Em nota encaminhada à redação, a AGU afirma que os pagamentos ao escritório Lalive serão feitos à medida que os serviços forem prestados. Até o momento, o governo brasileiro desembolsou 330 000 reais.
Apesar de poder responder por improbidade administrativa decorrente da investigação do caso Lalive, Mendonça está seguro que a história não lhe renderá problemas na Justiça e na sabatina do Senado. Ele fez visitas aos gabinetes e, nos últimos dias, viajou aos estados para falar com os parlamentares. Senadores avaliam que as resistências a seu nome deverão diminuir, sobretudo com a posse de Ciro Nogueira (PP-PI), líder do Centrão, na Casa Civil. “Mendonça é bem comedido”, diz Carlos Fávaro (PSD-MT). Outro parlamentar também relatou que o AGU tem destacado nas conversas que, uma vez no STF, manterá um perfil de respeito às garantias dos investigados e à Constituição — uma contraposição à era Lava-Jato. Bancadas como a do MDB, a maior da Casa, com quinze senadores, pretendem se reunir na semana que vem para deliberar sobre a indicação. Neste momento decisivo, além da habilidade política, será fundamental a Mendonça demonstrar que não há nenhuma mancha em seu currículo.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749