Por cerca de vinte anos, PT e PSDB rivalizaram nas eleições nacionais nos moldes estabelecidos pelo sistema democrático, em que partidos um pouco mais à esquerda ou à direita batalham pelo centro. No caso deles, a origem era comum, a esquerda, sendo o PT considerado mais radical e o PSDB, mais alinhado com a social-democracia. Bem estabelecidas sob esses rótulos, as duas siglas foram ampliando seu atrito, sempre brigando pelos mesmos postos, até chegarem ao auge do desacordo em 2014, quando a petista Dilma Rousseff e o tucano Aécio Neves, candidatos à Presidência, bateram boca como nunca antes nas campanhas deste país. Quatro anos depois, o novato (na disputa pelo Planalto) Jair Bolsonaro ocupou o lugar do PSDB no confronto com o PT, aumentou o tom dos discursos belicosos e insuflou a radicalização entre os dois lados. Sem espaço, o PSDB minguou. Incomodado, o tucanato faz agora o que é possível (e que interessa também à outra parte): aproximar-se do antigo adversário número 1.
O arrastar de asas mira alianças nos estados — algo que não acontece desde 1998 — e se expressa nas pragmáticas declarações de voto em Lula feitas por quadros históricos do partido, de onde um prócer, Geraldo Alckmin, saiu para se tornar vice na chapa petista. “PT e PSDB se aliam contra um adversário em comum, Bolsonaro. Mas as diferenças históricas devem fazer com que a paz se desfaça assim que o novo presidente assumir”, diz o cientista político Celso Roma, da USP, especialista no tucanato.
Pode ser que as parcerias sejam, de fato, eternas enquanto durem, mas elas estão em formação em diversos estados. No Rio de Janeiro, o neotucano Cesar Maia, que ingressou no ninho recentemente acompanhando o filho, Rodrigo Maia, é cotado para vice de Marcelo Freixo (PSB), o nome apoiado por Lula e pelo PT para o governo estadual. Outra costura alinhavada é no Maranhão, onde Carlos Brandão, ex-tucano que se aninhou no PSB e assumiu o governo após a renúncia de Flávio Dino, conta com o antigo partido na coligação que servirá de palanque oficial para Lula. Conversas envolvendo as duas legendas, em menor ou maior grau, acontecem no Pará, em Goiás e em Alagoas. “É a primeira vez desde 1989 que o PSDB não tem candidato à Presidência. Sem um nome competitivo que unifique o partido, cada um vai correr em raia própria”, diz o cientista político Ricardo Ismael, professor da PUC-Rio.
“A emoção e a alegria que senti ao transferir a faixa presidencial para Lula provinha do sentimento de dever cumprido e da sensação de que a democracia estava consolidada no Brasil.”
FHC em seu livro de memórias Um Intelectual na Política, sobre o episódio de 2003
Em que pesem as rixas políticas, futuros petistas e tucanos andaram de mãos dadas (não muito apertadas, mas andaram) no período da ditadura militar. Em seu livro Um Intelectual na Política, de 2021, Fernando Henrique Cardoso joga luz sobre o passado de convergências e divergências entre o partido criado no bojo da luta sindical e a sigla que nasceu dos quadros intelectualizados do velho MDB. Ainda tateando na política no fim da década de 70, FHC conta que procurou aproximar o então líder sindical Lula de Ulysses Guimarães e levá-lo para as fileiras emedebistas, onde se fazia a resistência final à ditadura militar. A missão fracassou. Em torno da eleição de 1989, já rivais, o livro descreve o mal-estar de FHC e do candidato do partido no primeiro turno, Mario Covas, ao subir no palanque entre vaias para apoiar o petista na disputa contra Fernando Collor. “Nosso apoio ao Lula no segundo turno era necessário, mas não amado”, observa, um tanto profeticamente. Já presidente, FHC emocionou-se ao passar a faixa presidencial para o petista — para ele, a consolidação da democracia —, mas não esconde a mágoa com os ataques que sofreu. “Lula e o PT cometeram o erro estratégico de considerar o PSDB como seu principal inimigo. Não éramos, nunca fomos. A principal ameaça à democracia era e é a extrema direita autoritária e regressiva”, escreve. Mais um acerto de Fernando Henrique.
O “nós contra eles” bradado pelo PT se tornou um traço seguidamente criticado pelo PSDB, mas o tom do discurso tucano também subiu, esquentou e até transbordou nas duas campanhas em que Dilma Rousseff foi candidata ao Planalto. O petista Fernando Haddad credita ao candidato José Serra em 2010, com suas falas recheadas de apelos conservadores como a condenação do aborto, a posterior ascensão da extrema direita, até ali enrustida. A retórica de Aécio Neves em 2014, especialmente o pedido de recontagem dos votos, é apontada como o ponto mais baixo a que chegou o nível do discurso do PSDB em uma campanha.
Entre os tucanos históricos, quem abraçou Lula de forma mais enfática na atual travessia eleitoral contra o bolsonarismo foi o ex-ministro Aloysio Nunes — para quem, além da óbvia oposição ao atual presidente, o país precisa de um presidente de esquerda. “É crucial termos políticas progressistas como as dos governos FHC e Lula e o petista hoje é quem melhor pode trazer isso. Não hesito em pedir votos para ele e espero que outros façam o mesmo”, convoca Nunes.
No lado do PT, considera-se que o gesto de puxar Alckmin para a campanha de Lula foi crucial para abrir as portas a outras lideranças. “É a eleição mais diferente da história do Brasil, na qual partidos diversos se alinham por causa da conjuntura brasileira e da divisão de forças em cada estado”, diz Wellington Dias, coordenador da campanha de Lula e petista de mais de três décadas. Para Dias, é fundamental que a eventual aproximação de rivais perdure ao longo do próximo governo. “Mais do que uma estratégia para vencer as eleições, tem de ser um compromisso de entendimento para governar juntos”, afirma. Resta ver se o ninho que agora acolhe filhotes de outras espécies vai continuar a alimentá-los depois que outubro passar. Seria um ousado gesto atrelado ao início de tudo.
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797