O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ainda estava irredutível na tarde da última terça-feira, 9. A uma semana de sua posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Moraes estava decidido a quebrar o protocolo para evitar um encontro com o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. A tradição recomenda que o convite para a cerimônia seja entregue em mãos. Irritado com os recentes ataques do presidente, o ministro havia decidido que não iria ao Palácio do Planalto. Chegou a ser ríspido quando lhe perguntaram sobre o motivo da atitude deselegante. “Na minha posse vai ser assim”, asseverou. No dia seguinte, à noite e de cabeça mais fria, Moraes foi ao Planalto acompanhado do ministro Ricardo Lewandowski, o futuro vice-presidente do TSE. Permaneceu lá por quase uma hora, entrou e saiu pela garagem sem dar entrevistas, conversou descontraidamente com o presidente, entregou o convite em mãos e ainda ganhou de presente uma camisa do Corinthians. A aproximação, que deve ser sacramentada com a presença de Bolsonaro em sua posse, foi efusivamente comemorada pelo governo.
Do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, ao senador Flávio Bolsonaro, não faltam vozes no entorno do presidente a aconselhá-lo a deixar de lado os ataques aos ministros do STF, especialmente os dirigidos a Alexandre de Moraes. Já houve, inclusive, inúmeras tentativas de costura de um armistício entre as partes. O problema é que, depois das conversas conciliatórias, geralmente o próprio Bolsonaro implode as pontes que estavam sendo construídas. Na véspera do feriado de 7 de Setembro do ano passado, por exemplo, o presidente mandou dizer ao STF que não atacaria nenhum ministro individualmente nas manifestações que estavam programadas. No palanque, ele não se conteve e partiu para cima de Moraes. Desde então, o governo tenta costurar um acordo de paz. Até agora, fracassou — não porque os ministros não queiram baixar a temperatura da briga, mas porque o próprio presidente, quando o diálogo parece encaminhado, retoma a artilharia. Aliás, no mesmo dia em que recebeu Moraes, Bolsonaro esteve, por exemplo, com o hacker da Vaza-Jato, Walter Delgatti, um encontro completamente desnecessário, além de suspeito.
Desta vez, porém, as circunstâncias são diferentes. Adotada desde o início do mandato, a estratégia de tensionar a relação com ministros do Supremo ajudou Bolsonaro a manter sua base de apoio mais fiel arregimentada durante os períodos de alta desaprovação a seu governo. Foi uma espécie de seguro para a travessia dos momentos de maior dificuldade política. Mas do ponto de vista eleitoral essa estratégia é um desastre para Bolsonaro, que precisa atrair o eleitor mais moderado a fim de reduzir a desvantagem que tem em relação ao seu principal adversário, o ex-presidente Lula. De acordo com os próprios coordenadores da campanha à reeleição, o presidente precisa abandonar a retórica beligerante e concentrar energias em pautas positivas, ainda mais agora que ele tem o que mostrar. Nesta semana, o governo começou a pagar uma série de novos benefícios, como o Auxílio Brasil turbinado e a ajuda aos caminhoneiros autônomos. As pesquisas mostraram que essas medidas — ao contrário da pregação contra o STF e as urnas eletrônicas — melhoraram as intenções de voto no presidente em nichos estratégicos do eleitorado.
Em Brasília, certas negociações e acordos, seja pelo teor, pela delicadeza do tema ou por simples conveniência, jamais são admitidos publicamente. Mas eles existem. No mês passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, procurou o ministro Jorge Oliveira, do Tribunal de Contas da União, e pediu a ele que ajudasse a construir um pacto para cessar as hostilidades entre o governo e o Supremo. Ex-auxiliar de Bolsonaro, Jorge goza de prestígio e acesso a gabinetes importantes do Judiciário. Guedes, por sua vez, se alinha ao grupo de auxiliares do presidente da República que aposta que a recuperação econômica e as medidas de combate à pobreza anunciadas recentemente bastariam para Jair Bolsonaro vencer a eleição de outubro. Ambos concordam que o embate entre o presidente e os magistrados, além de não agregar um mísero voto, provoca uma situação de instabilidade que neste momento não interessa a nenhum dos lados.
A partir da próxima semana, a condução do processo eleitoral estará sob a responsabilidade de Alexandre de Moraes. Além da votação, o TSE cuida da fiscalização das campanhas, da prestação de contas dos candidatos e da análise de eventuais pedidos de cassação de mandato. Paralelamente, o ministro também continuará conduzindo duas investigações que há tempos atormentam o presidente da República: a que apura a disseminação de notícias falsas e a que acusa militantes bolsonaristas pela prática de atos antidemocráticos. Bolsonaro se diz perseguido por Moraes, a quem já chamou de “canalha” e “parcial”. Moraes, por sua vez, já enviou duros recados velados ao mandatário. Em uma sessão pública, disse que não hesitaria em cassar o registro e até mesmo mandar prender quem lançar mão de milícias digitais durante o período eleitoral. O presidente entendeu a mensagem como uma ameaça, um prenúncio de que o ministro estaria maquinando algo contra ele e seus filhos. Para piorar, não são apenas pessoas mais equilibradas, como Ciro Nogueira e Paulo Guedes, que possuem franco acesso a seus ouvidos.
Dono de um temperamento impulsivo, que enxerga conspirações onde elas não existem, Bolsonaro tem em torno de si um cinturão de conselheiros que pouco ajudam o presidente e o país. São amigos de longa data, como o ex-auxiliar Waldir Ferraz, o Jacaré, e neófitos desplugados da realidade, a exemplo da deputada Carla Zambelli, que ficam atiçando o “amigo capitão” com informações absolutamente equivocadas e palpites infelizes. De junho de 2020 ao famoso Sete de Setembro do ano passado, ministros do Supremo contabilizaram pelo menos dez vezes em que essa turma comunicou falsamente ao chefe que a prisão de um de seus filhos havia sido decretada. Isso, evidentemente, acirra os ânimos. No último dia 31, na presença de alguns interlocutores, o presidente, destemperado, voltou a desfiar uma série de impropérios contra Alexandre de Moraes. Chegou a ponto de dizer que estaria disposto a “matar”, se fosse preciso, caso alguém ousasse tentar prendê-lo. Diante desse ambiente conflagrado, qualquer acordo de paz só avança a partir de uma trégua bem costurada — e que todos tenham interesse nela.
Partindo dessa premissa, emissários do governo elaboraram os termos de uma proposta de acordo. Por esse acerto, Alexandre de Moraes encerraria as investigações que tanto atormentam o presidente. Em contrapartida, Bolsonaro deixaria de atacar o Supremo e a credibilidade das urnas eletrônicas, afastando o receio de uma crise institucional. Paulo Guedes ligou para Gilmar Mendes, o decano do STF, o primeiro a ser sondado sobre o pacto. O magistrado ouviu as ponderações, elogiou a tentativa de reaproximar os dois poderes e recomendou ao ministro que procurasse Moraes. Mendes comentou depois que não havia ficado muito claro, por exemplo, se, ao falar no encerramento do inquérito, Guedes estaria condicionando tal trégua ao arquivamento puro e simples das investigações, independentemente de haver ou não provas contra os alvos da ação, entre os quais, como se sabe, estão os filhos Eduardo e Carlos Bolsonaro. Informado sobre a dúvida, Moraes reagiu bem a seu estilo: “Não creio que alguém vai ter a coragem de vir aqui me pedir para cometer crime de prevaricação”. Outros três ministros do Supremo também já foram consultados sobre o arranjo. Um deles contou a VEJA, sob reserva, que a pressa do governo se deve ao temor de que ocorra alguma operação espetaculosa às vésperas da eleição. Daí, a proposta de encerrar o inquérito o mais breve possível.
Pelo nível dos embates nos últimos anos, é natural que a chegada de Alexandre de Moraes ao TSE gere a expectativa de que o confronto com Bolsonaro aumente em intensidade. Engana-se, porém, quem imagina que Moraes assumirá o posto máximo da Justiça Eleitoral pintado para a guerra. Antes mesmo de pisar no Planalto, o ministro já havia decidido que até o fim das eleições não haverá prisões, buscas, apreensão de documentos, novos depoimentos ou qualquer outra ação que possa de alguma forma interferir no processo eleitoral. Em outra vertente, a equipe jurídica do ministro também trabalha com a tese de que ações de impugnação de mandato, como as que o PT apresentou em 2018 contra o atual presidente por supostos disparos ilegais de mensagens em massa, só terão prosseguimento se ficar comprovado que a eventual ilegalidade partiu diretamente da campanha ou de pessoas ligadas a ela. São, sem dúvida, dois acenos importantes aos bolsonaristas.
Alvo principal dos radicais que pregam o fechamento do STF, Moraes, ao contrário do que se poderia supor, não vislumbra uma ameaça real à democracia ou a possibilidade de um golpe. As manifestações ilegais, segundo ele, foram esvaziadas pela ação da justiça. O ministro também conhece há anos o general Luiz Ramos, chefe da Secretaria-Geral da Presidência, o ex e o atual ministro da Defesa, generais Fernando Azevedo e Paulo Sérgio Oliveira, e o candidato a vice de Bolsonaro, general Braga Netto. Embora alimente críticas à falta de talento de alguns desses militares para ocupar os respectivos cargos, o magistrado tem por certo que nenhum deles se aliaria a movimentos golpistas, nem mesmo se recebessem ordens superiores. A proximidade do ministro com a caserna também é física. Chamado de “comunista” por apoiadores mais exaltados do presidente, ele treina muay thai na sede do Comando do Exército em Brasília, curiosamente o palco do primeiro discurso inflamado de Jair Bolsonaro contra o Supremo Tribunal Federal, em abril de 2020.
Nos últimos tempos, o ministro tem se dedicado a mapear os muitos personagens “mal-intencionados” do governo que instigam o presidente ao confronto com o STF, os poucos “bem-intencionados” que procuram ajudar a evitá-lo e, sempre que pode, reproduz aos interlocutores, em um tom menos sério, o modo como alguns bolsonaristas notórios, de Roberto Jefferson ao deputado Daniel Silveira, reagiram se ao ser surpreendidos com a polícia dentro de casa — nem sempre com a valentia que os fez famosos, diga-se. Não se sabe se a surpreendente visita de Moraes ao Planalto representa o início de uma relação civilizada. Nos cinquenta minutos de conversa, o presidente da República e o novo presidente do TSE trocaram algumas gentilezas e reafirmaram que não se consideram inimigos. Em parte do encontro, no entanto, o assunto foi apenas futebol. Não é o ideal, ainda está muito distante do que o país precisa, mas já é um começo.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802