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Além da ideologia

O divisor natural entre esquerda e direita é insuficiente para entender o que está acontecendo na política mundial

Por Bernardo Sorj*
Atualizado em 18 jul 2019, 10h55 - Publicado em 24 Maio 2019, 07h00

Nada mais natural nas democracias que um movimento pendular na escolha de governos, seja para a esquerda, seja para a direita do espectro político. Além das circunstâncias particulares que levam a mudanças no humor da opinião pública em cada país, fatores internacionais, inesperados, podem influenciar a dinâmica do pêndulo. Por exemplo, a primeira década do século se iniciou na América Latina com vários governos de esquerda, que foram circunstancialmente favorecidos pelo boom das commodities. Mais recentemente, a guerra na Síria transformou milhões de pessoas em refugiados, com muitos deles dirigindo-se para a Europa, o que fez recrudescer o debate sobre imigração no continente.

Se o movimento pendular é recorrente, a pergunta que se coloca é se há alguma novidade no momento atual, quando, nos Estados Unidos e na maioria dos países da União Europeia e da América Latina, governam partidos ou coalizões de direita. A resposta é afirmativa. O movimento do pêndulo foi modificado, mas para compreendermos o que está acontecendo devemos dar um passo atrás e discutir os limites das categorias direita e esquerda para caracterizar o quadro político.

Esquerda e direita, em termos gerais, se referem a posições ideológicas que valorizam o papel do mercado e do setor privado, no caso da direita, e enfatizam a necessidade de intervenção pública para limitar os efeitos da desigualdade social e da pobreza, no caso da esquerda. Embora em abstrato pareçam posições contrapostas, na prática se trata de uma questão de ênfase, a partir da realidade de cada país. Assim, por exemplo, nenhum partido de direita europeu questiona o sistema nacional de saúde pública universal, enquanto nos Estados Unidos ele inexiste, e até dentro da esquerda é uma reivindicação que somente agora começa a ser mais amplamente aceita. Por sua vez, nenhum partido de esquerda propõe abolir o mercado. Por isso, o que existe, na realidade, são partidos democráticos de centro-direita e centro-esquerda.

O divisor entre esquerda e direita é insuficiente para entender o que está em jogo na vida política. Um divisor mais fundamental é entre esquerda e direita democráticas e esquerda e direita antidemocráticas. Na América Latina, por exemplo, os governos da Frente Ampla, no Uruguai, da Concertação, no Chile, ou do PT, no Brasil, pelo lado da esquerda, ou os governos de direita no Chile, na Argentina ou no México respeitaram a separação de poderes, a autonomia da sociedade civil, a liberdade de imprensa e os princípios constitucionais. O que não é o caso de Maduro, na Venezuela, Ortega, na Nicarágua, e, com mais ambiguidades, Evo Morales, na Bolívia, governos nos quais presenciamos a destruição gradual mas constante das instituições democráticas.

“A direita deve enfrentar a desigualdade; a esquerda, parar de fazer de conta que o mercado não existe”

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A novidade nos países desenvolvidos, que tem chegado ao Brasil, é que a principal bandeira dos partidos da nova direita não é o liberalismo econômico, e sim o reacionarismo cultural. A nova direita, com tintas muito variadas em cada país, promove um nacionalismo xenofóbico que se enamora de variadas formas de racismo e no âmbito internacional se opõe a instituições e acordos que limitariam a soberania nacional, em áreas como meio ambiente ou direitos humanos; ataca os direitos das minorias, a autonomia do Judiciário, a imprensa livre e as organizações da sociedade civil; idealiza o passado, em particular no campo da cultura e dos costumes — quando as “mulheres sabiam seu lugar” e os homossexuais eram marginalizados —, fazendo uso de simbologias religiosas. A nova direita promove, ­sobretudo, um discurso anti-intelectual e antipluralista, que substitui o argumento por fake ou hate news (notícias falsas ou de ódio), transformando a política em guerra, em que qualquer oposição é tratada como inimiga, a serviço de conspirações que querem destruir a “nação”, isto é, o que ela define como sendo a “pátria”, e quem discordar é considerado traidor.

É importante notar que o ataque da nova direita se dirige tanto à esquerda quanto — em muitos lugares ainda mais — à direita tradicional. Cabe igualmente destacar que a nova direita se apropriou de temas que foram lançados pela esquerda alternativa, como a crítica à globalização ou ao poder do capital financeiro internacional, o que lhe permite atrair grupos sociais que se sentem econômica ou culturalmente prejudicados ou deslocados pelas enormes transformações das sociedades nas últimas décadas.

A nova direita questiona tanto a esquerda como a direita democrática. Na realidade, ambas, apesar de suas divergências, se sustentam em elites cosmopolitas, abertas às transformações sociais, econômicas e culturais e aos novos problemas que exigem consenso internacional, como o meio ambiente.

O atual debate brasileiro, por razões conjunturais, fusionou na última eleição a figura do presidente Jair Bolsonaro com correntes ideológicas muito díspares. Por um lado, setores cosmopolitas que apoiam uma agenda econômica liberal, e, por outro lado, setores antiliberais, na realidade uma amálgama muito diversa de conservadorismo moral e autoritarismo truculento.

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A situação atual coloca desafios tanto para a direita como para a esquerda democráticas. A direita deve encontrar um discurso que promova o liberalismo econômico e que seja capaz de atrair amplos setores da população. Sob pena de ter de aliar-se com tendências que põem em risco a democracia para terem apelo eleitoral, deverá confrontar os problemas da desigualdade social e da pobreza. A esquerda deve parar de fazer de conta que o mercado não existe, que as empresas públicas são de interesse social, e reconhecer que os regimes autoritários de esquerda são, em primeiro lugar e sobretudo, regimes autoritários.

* Bernardo Sorj é sociólogo

Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636

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