Clã Bolsonaro faz ofensiva para frear o voo próprio de Cláudio Castro
Nos bastidores, família do presidente usa todas as armas para preservar o poder no Rio, seu berço político
Quem esteve na festa de 43 anos do governador Cláudio Castro, no dia 29 de março, percebeu claramente a influência do senador Flávio Bolsonaro na política do Rio de Janeiro. Com semblante sério, entre um gole de uísque Dewar’s e uma baforada no cigarro eletrônico, o senador recebia abraços e rapapés de deputados e integrantes do Judiciário sem disfarçar uma certa contrariedade. Quatro dias antes, o telefone de Castro — que monta sua agenda em torno do projeto de permanecer no Palácio Guanabara na eleição deste ano — havia tocado na van em que era conduzido a um compromisso público. Era Flávio, cobrando do governador e até agora aliado maior empenho pessoal em outro plano de reeleição — o do pai dele, Jair Bolsonaro — e criticando sua proximidade com figuras que trabalham nos bastidores para pôr de pé uma eventual dobradinha Castro-Lula. A resposta, segundo pessoas que acompanharam a conversa, foi firme: “Tenho lealdade a vocês, mas essa eleição é minha. Não posso abrir mão de alianças”.
Os dois episódios ressaltam a preocupação dos Bolsonaro com o andamento da campanha presidencial em seu berço político. Segundo o Datafolha, 63% dos eleitores do Rio de Janeiro não votariam de jeito nenhum em um candidato apoiado pelo presidente, dado que vem dificultando o delicado equilíbrio de Cláudio Castro entre a fidelidade ao bolsonarismo, que sempre foi sua base de sustentação, e o pragmatismo com que vem costurando apoios à sua candidatura nos últimos meses. Apesar de a relação pessoal entre ele e o presidente ser cordial, o caminho até a eleição de outubro toma cada vez mais a forma de um campo minado, que o clã presidencial se empenha em desativar.
Desconhecido de quase toda a população, Castro, então no PSC, assumiu o governo em agosto de 2020 após o afastamento de Wilson Witzel, aliado que virara inimigo dos Bolsonaro. Foi confirmado no cargo com a conclusão do processo de impeachment, em abril de 2021. Inexperiente e sem uma base política, lançou-se aos braços abertos do clã Bolsonaro, por sua vez desejoso de retomar o protagonismo no governo do Rio, e dele se tornou uma espécie de refém. Com o passar do tempo, porém, o neófito foi ganhando vida própria e tentando imprimir uma marca no governo, embalado pela dinheirama advinda de uma transação concluída, simbolicamente, no mesmo dia em que Witzel sofreu impeachment: a venda da Cedae, empresa de água e esgoto do estado. A filiação ao PL acabou sendo vista como um gesto de distanciamento do já impopular Bolsonaro — que saiu pela culatra quando, em novembro, o presidente ingressou no mesmo partido. Segundo aliados, Castro reagiu à notícia com uma incredulidade recheada de palavrões. “O Cláudio hoje tem capital político para trilhar seus próprios caminhos”, acredita um homem forte de seu governo. Oficialmente, claro, os dois lados negam desgaste na relação. “Não tem insatisfação alguma. Vamos atropelar a esquerda no Rio”, afirmou Flávio a VEJA.
Na efervescência dos bastidores, as evidências da interferência do clã no espaço de Castro são variadas: vão de picuinhas típicas do bolsonarismo a esquemas elaborados para mantê-lo sob tutela. Nesse último caso entram tanto a intenção de colocar como vice na chapa pelo governo estadual alguém notoriamente leal ao clã — um guardião de seus interesses no Palácio Guanabara — quanto a investigação, em mãos da Procuradoria-Geral da República, de uma suposta propina de 100 000 reais recebida pelo governador quando era vice de Witzel. A encarregada do caso é a vice-procuradora Lindôra Araújo, muito próxima a Flávio e considerada bolsonarista.
Os temores de traição se baseiam principalmente no entorno do governador, onde circulam futuros apoiadores de Lula como os deputados e ex-secretários Aureo Ribeiro, do Solidariedade, e Max Lemos, do Pros, que já se movimentam no intuito de pedir votos para o PT. Para piorar o clima, cabos eleitorais de peso, como prefeitos da Baixada Fluminense teoricamente aliados a Bolsonaro, se reuniram com o candidato petista no Rio no fim de março — entre eles, inclusive, Washington Reis, ex-prefeito de Duque de Caxias e um dos nomes cotados para vice do governador. O encontro foi articulado por André Ceciliano, petista que preside a Assembleia Legislativa, é pré-candidato ao Senado e principal interlocutor de Lula no estado.
Poderoso, bem relacionado (e próximo de Castro), Ceciliano é visto pelos Bolsonaro como peça-chave na arquitetura da alardeada intenção do PT de ampliar o palanque lulista para além de seu candidato no estado, Marcelo Freixo (PSB). No submundo do bolsonarismo, as intrigas sobram até para o presidente do PL no Rio, Altineu Côrtes, que reparte com Flávio o domínio das duas alas do partido no estado e teve imagens suas ao lado de Dilma Rousseff (na eleição municipal de 2012, diga-se) espalhadas em grupos de WhatsApp. Outra insatisfação do clã envolve a boa relação de Castro com o ex-reitor da Uerj Ricardo Lodi, candidato a deputado federal pelo PT, que o convidou para um evento do qual Lula participou na universidade. Filiada há pouco ao União Brasil, mais uma agremiação dividida entre grupos próximos e distantes de Castro, a deputada federal Clarissa Garotinho, no momento bolsonarista, endossa a tese de que o governador prepara um golpe nos próximos meses. Para a filha do ex-governador Anthony Garotinho, Lula está muito mais bem arranjado para a eleição no Rio do que o presidente. “Lula já tem um palanque direto (Freixo) e dois indiretos (Rodrigo Neves e Felipe Santa Cruz). Bolsonaro tem meio palanque”, afirma. No berço do bolsonarismo, a toada nervosa dos interesses eleitorais não está deixando ninguém dormir.
Publicado em VEJA de 20 de abril de 2022, edição nº 2785