Nos países mais desenvolvidos, não é incomum que movimentações bancárias, evoluções de patrimônio, declarações de renda e cada detalhe da vida financeira de autoridades públicas recebam atenção especial dos órgãos de fiscalização. A simples suspeita de um caso de sonegação de impostos, especialmente se envolver um político importante, é prenúncio de escândalo, já foi responsável por colocar um ponto-final em muitas carreiras e, quando comprovada, não raro resulta em prisão. No Brasil, a tradição é outra — o que não quer dizer que, por aqui, as autoridades estejam completamente blindadas. VEJA teve acesso a documentos sigilosos da Receita Federal que trazem o nome de dezenas de políticos e servidores públicos de alto escalão investigados pelo órgão. Do inventário constam senadores, deputados, governadores, ministros, prefeitos, um desembargador, conselheiros de Tribunais de Contas estaduais e dois ex-candidatos à Presidência da República. Ao todo, 173 figurões tiveram procedimentos fiscais instaurados contra eles nos últimos cinco anos.
No Congresso Nacional, 49 parlamentares foram investigados. São onze senadores e 38 deputados federais. Os nomes constam em duas listas com procedimentos que tiveram como alvo as chamadas “Pessoas Expostas Politicamente”, um conjunto de autoridades que, pela importância e pelo posto que ocupam, compõem um grupo cujas informações fiscais, em mãos erradas, poderiam alimentar todo tipo de perseguição política. A primeira das listas da Receita traz 26 políticos de vários partidos. Três chamam a atenção pelo cargo de destaque que ocupam ou já ocuparam. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), atualmente relator da CPI da Pandemia, é um deles. O parlamentar é o nono nome do rol de autoridades elaborado pela Receita com o apoio de relatórios produzidos pelo Coaf, o órgão que monitora movimentações financeiras suspeitas para auxiliar na apuração de casos de sonegação fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro.
Há governistas e oposicionistas na mira do Leão. Os documentos obtidos por VEJA não trazem maiores detalhes sobre o teor e a situação dos processos. Calheiros, por exemplo, começou a ser investigado em 2019, época em que, após ter submergido pela perda de parte da relevância parlamentar de antigamente, tentou se reabilitar, disputando a presidência do Senado. Derrotado, ele viu seu processo fiscal ganhar fôlego no ano seguinte, com o reforço de relatórios de inteligência financeira produzidos pelo Coaf. Alvo de mais de uma dezena de inquéritos por acusações como desvio de recursos públicos e corrupção, o congressista informou a VEJA, por meio de sua defesa, não saber o motivo pelo qual é investigado.
Aliado do presidente Jair Bolsonaro, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), também faz parte da seleta lista. O parlamentar entrou no radar do Fisco em 2015, durante a Operação Lava-Jato, ocasião em que ele e outros integrantes do partido foram acusados de corrupção. Relatórios do Coaf teriam apontado inconsistências em sua movimentação bancária. A seu favor, Lira foi absolvido da maioria das acusações criminais feitas pelo Ministério Público, mas os processos tributários continuam ativos. “É importante que a Receita dê celeridade aos processos fiscais pendentes, que estão relacionados a processos penais já arquivados”, disse o presidente da Câmara através de sua assessoria.
Extenso, o rol de investigados pelo Leão é suprapartidário. Candidato à Presidência da República em 2014, o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) é o terceiro nome do inventário de autoridades que simultaneamente foram investigadas pela Receita e pelo Coaf nos últimos cinco anos. O tucano começou a ser monitorado por possíveis irregularidades fiscais em 2019, quando estreou o atual mandato de deputado. Derrotado na corrida presidencial pela petista Dilma Rousseff em 2014, Aécio também foi fisgado pela Lava-Jato. O escândalo mitigou a popularidade do tucano, que trocou um ativo mandato de senador por um discreto posto na Câmara, mas não se livrou das investigações. Há cinco meses, o Coaf produziu dois relatórios de inteligência financeira contra o parlamentar, reunindo indícios de movimentações suspeitas de recursos. Procurado, Aécio não se pronunciou.
Uma segunda lista do Fisco mostra que, nos últimos cinco anos, foram abertos 211 procedimentos de fiscalização contra autoridades. Nela estão, entre outros, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (Progressistas-PI), senadores governistas integrantes da CPI da Pandemia, o senador Fernando Collor (Pros-AL), o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), e o atual secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles (PSD). A Receita não comenta a situação fiscal de nenhum dos contribuintes, mas especialistas explicam que investigações dessa natureza quase sempre perseguem indícios de evolução patrimonial combinada com movimentações bancárias suspeitas. Ex-candidato à Presidência da República em 2018, Meirelles confirmou ter sido notificado sobre a fiscalização, que envolve uma divergência sobre alíquotas para recolhimento de impostos.
Um dos campeões de processos, Fernando Collor está sendo cobrado a pagar cerca de 10 milhões de reais em impostos, juros e multa após a acusação de que omitiu rendimentos. Pilhado na Lava-Jato e réu por corrupção no Supremo, o senador é alvo de três procedimentos fiscais, todos abertos em 2015, quando ele integrou a primeira lista de políticos acusados de receber propina no escândalo da Petrobras. A Receita também cobra 17 milhões de reais de Ciro Nogueira. Tanto Ciro quanto Collor e Meirelles negam irregularidades e recorrem da cobrança. “Sou vítima do ativismo político que imperou nesses órgãos de fiscalização”, reclama o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros. Ex-ministro da Saúde, o parlamentar aparece na posição 195 na lista de autoridades alvos de processos para a cobrança de tributos. O procedimento fiscal contra ele foi aberto em 2018.
Evidentemente, nem todas as investigações contêm necessariamente irregularidades. Há três anos, a Receita abriu um processo contra o ministro Gilmar Mendes e sua família e, como ficou comprovado posteriormente, havia um viés político na investigação. Mas é fato que a prática existe, trazendo enormes prejuízos para os cofres públicos. No total, calcula-se que o Brasil perca por ano cerca de 400 bilhões de reais de arrecadação federal apenas por sonegação — o equivalente a 27% de tudo o que a Receita recolhe em tributos. Especialistas afirmam que boa parte dessa riqueza poderia chegar aos cofres públicos se as leis não fossem tão benevolentes. “Para muitos, a sonegação é quase um método de planejamento tributário. Se a pessoa for apanhada pela fiscalização, é só pagar a dívida e está resolvido”, diz o auditor Kléber Cabral, presidente do Sindifisco. No início do governo Bolsonaro, chegou-se a estudar a possibilidade de incluir no chamado pacote anticrime penas de prisão para sonegadores. A ideia, porém, foi logo abandonada pelos congressistas. Com tantos deles incluídos na lista, dá até para especular o porquê.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751