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A lei bandida

Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628

Por J.R. Guzzo Atualizado em 29 mar 2019, 07h00 - Publicado em 29 mar 2019, 07h00

O ex-presidente Michel Temer, de novo em liberdade após curta estada no xadrez, é o mais recente porta-bandeira das tropas que combatem pelo cumprimento rigorosíssimo da lei, nos seus detalhes mais extremos, e não admitem nenhum tipo de punição para magnatas antes que a sua culpa fique comprovada no Dia do Juízo Universal. Até outro dia Temer era “o golpista” — ou, pelo menos, o vampiro que chefiava uma quadrilha de ladrões metida a cada instante com malas de dinheiro vivo, crimes anotados em fitas gravadas e outros horrores do mesmo quilate. Mas a vida brasileira tem sido isso mesmo. Hoje em dia não importa quem você é ou o que você faz; se estiver com o camburão da Lava-Jato na sua cola, o cidadão passa a ser imediatamente uma vítima do “moralismo”, da “repressão judicial” e dos “linchadores” que querem “rasgar as leis deste país” etc. etc. Temer, assim, passou a ser mais um símbolo do homem perseguido pela “ação ilegal” das autoridades — e o seu alvará de soltura foi comemorado como uma vitória do “estado de direito”, da majestade das leis e da soberania da Constituição.

Tudo bem. Temer só deveria ir para a cadeia depois de condenado em pelo menos um dos dez inquéritos por corrupção a que responde no momento; seus advogados sustentam a tese de que ele é inocente em todos os dez, nunca cometeu nenhum delito em quarenta anos de política, e enquanto os juízes acreditarem nisso o homem não pode ser preso. Ele não poderia aproveitar para fugir do Brasil? Poderia, mas não iria adiantar nada: seria preso no dia seguinte pela Interpol e mandado de volta. Não poderia, então, usar a liberdade para destruir provas? Talvez, mas teria de ser flagrado pela polícia fazendo isso para que a sua prisão fosse justificada. Mas o que transforma num desastre essa história toda, tanto o ato de prender como o ato de soltar, é a perversão da ideia de justiça que ela representa. O problema, aí, não é o despacho do juiz Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro, que causou tanto escândalo ao mandar prender o ex-­presidente. O problema é a lei que permite o despacho de Bretas. Ela é exatamente a mesma que sustenta os direitos do réu. Conclusão: cumprir “a lei”, como exigem os campeões do “direito de defesa”, significa aceitar que o juiz Bretas tome decisões como essa quantas vezes lhe der na telha.

“As instituições de hoje são um lixo. É feio dizer isso. Mas dizer o contrário é falso”

O “Brasil civilizado”, esse consórcio de gente bem-educada, liberal e moderna que acha um equívoco combater os crimes de primeira classe com penas de prisão, vive num mundo impossível. Acha que a decisão de Bretas foi uma aberração. Ao mesmo tempo, horroriza-se se alguém constata o fato puro e simples de que é a sagrada Constituição brasileira, com toda a penca de leis pendurada nela, que permite ao juiz agir exatamente como agiu. Não apenas permite — incentiva, protege e garante a absoluta impunidade para qualquer coisa que ele já tenha decidido ou venha a decidir. Ele, Bretas, e mais 100% das autoridades judiciárias do país. Mas vá alguém sugerir, mesmo com cuidado máximo, que a Constituição é hoje a maior ferramenta para promover a negação da justiça no Brasil — o mundo vem abaixo na hora e quem fez a crítica é excomungado automaticamente como um inimigo do “estado de direito”. Mas aí é que está: a verdade, para falar as coisas como elas realmente são, é que a Constituição funciona como a grande incentivadora do crime cinco-estrelas — o que é cometido por gente rica, poderosa ou detentora de autoridade a serviço do Estado. É ruim na ida e ruim na volta.

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A comprovação definitiva da insânia, no episódio Temer, é que o desembargador que o soltou, Ivan Athié, um veterano especialista em libertar ladrões do Erário, ficou sete anos afastado da magistratura por acusações de praticar estelionato. Mas está lá de volta, em cumprimento ao que diz a Constituição. Mais: na mesma ocasião, e no mesmo local, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro deu posse a quatro deputados que se encontram, fisicamente, presos na Penitenciária de Bangu e a mais um detido em prisão domiciliar. Ou seja — o sujeito não pode andar na rua, mas pode ser deputado estadual. De novo, é o respeito religioso à lei que produz esse tipo de depravação aberta. Parece errado, mas a Constituição Cidadã diz que é certo. Tudo isso — Bretas, Temer, Athié, presidiários-deputados — significa “a vitória das instituições”, segundo nos garantem os defensores da legalidade acima de tudo. Perfeito. O único problema é que as instituições brasileiras de hoje são um lixo. Pode ser feio dizer ­isso, com certeza. Mas dizer o contrário é simplesmente falso.

Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628

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