De desconhecida na Câmara dos Deputados, a novata Tabata Amaral (PDT-SP) virou o assunto mais comentado no Twitter ao emparedar o ministro da Educação, Ricardo Vélez, em sua arrastada apresentação no Congresso, na quarta-feira 27. Diante do vazio de ideias do ministro, a deputada de 25 anos disparou: “Isso não é planejamento, mas uma lista de desejos” — e fez o veterano Vélez gaguejar. Egressa de uma família pobre da periferia de São Paulo — a mãe, diarista, e o pai, que morreu em decorrência do vício em drogas, trocador de ônibus —, ela começou sua escalada em olimpíadas escolares na área de exatas, ganhou bolsa em um colégio particular e, de lá, conseguiu vaga nos cursos de astrofísica e ciências políticas na Universidade Harvard. Ao voltar para o Brasil, em 2016, certa de que sua pauta estava na sala de aula, fundou o Mapa Educação, que engaja jovens, e o movimento Acredito, que pretende promover uma renovação política da qual Tabata é, ela mesma, um dos expoentes. Ainda se aclimatando à vida parlamentar, ela falou a VEJA.
No dia de seu confronto com o ministro Ricardo Vélez no Congresso, a senhora já saiu de casa disposta a partir para a briga? Não. A única pergunta que tinha preparado mesmo era sobre as prioridades do ministério. Mas aí ele veio com uma apresentação em PowerPoint sem ideias, sem planos nem metas. Então manifestei minha profunda frustração naquele desabafo. Alguns colegas me parabenizaram depois. Também estavam angustiados.
E a agonia se dissipou? Não. O MEC está paralisado, desorganizado, sem know-how em educação e gestão. Tem muita gente do meio achando que as avaliações feitas pela Pasta, como o Enem, podem atrasar. Além de a gráfica que rodava as provas do Enem ter falido, a comissão formada para analisar o viés ideológico das questões — com a qual, aliás, eu não concordo — nem começou a trabalhar. E olhe que nesse mundo das aferições do ensino o Brasil ganha até destaque no cenário internacional.
O componente ideológico tem emperrado a pauta da educação? Sem dúvida. O melhor exemplo disso é o Escola sem Partido, uma completa perda de tempo em um país em que os alunos não sabem fazer uma conta de fração, não leem nem escrevem direito e não completam o ensino médio. Esses são temas prioritários. A doutrinação política em sala de aula, não. E, para combatê-la quando existe, não adianta cercear a escola, o que é até inconstitucional por ferir o direito à livre cátedra. O Supremo Tribunal Federal já disse, inclusive, que vai barrar qualquer iniciativa nesse sentido. Infelizmente, a polarização ideológica permeia todos os debates.
De que modo essa polarização se reflete no Congresso? Certamente analisamos menos projetos por causa de posições extremadas e contaminadas por ideologia. Elas freiam a pauta o tempo todo. Passamos cinco, seis horas discutindo uma matéria, aí os deputados do campo oposto começam a apresentar vários requerimentos e questões de ordem para encerrar a discussão. São instrumentos previstos em lei, podem ser úteis ao rito democrático, mas colegas mais experientes da Câmara dizem que nunca se abusou tanto desses recursos. É um travando o outro por questões de cunho político, que não têm nada a ver com o mérito do que está na mesa.
“Certamente analisamos menos projetos por causa de posições extremadas e contaminadas por ideologia. Elas freiam a pauta o tempo todo. É um deputado travando o outro”
A pauta da educação anda engolida no meio desse embate? Anda, sim. A educação tem um impacto pequeno na agenda nacional. E, nesses três meses de governo, continuou a ser uma coleção de generalidades, como já se via no programa de campanha do presidente.
Como sacudir o marasmo nesse campo? Para saltar de patamar, é preciso cobrar para valer. E a sociedade ainda faz isso de forma relativa, demandando mais escolas, mas não qualidade. Para os meus pais, por exemplo, estudar era um grande diferencial em relação à experiência que tiveram. E era ótimo que meu irmão e eu tivéssemos chegado lá. Quem não usufruiu um bom ensino dificilmente saberá exigir excelência. Cabe àqueles que tiveram educação fazer isso. Estar em uma posição como a minha certamente pode ajudar. Se a pauta da educação não andar, não haverá desenvolvimento. Temos de acordar logo.
É a classe política que precisa acordar? Ela mesma. Por inépcia do MEC, neste exato momento em que estamos conversando quem lidera a discussão sobre os rumos do FNDE, o principal fundo da educação básica no Brasil, é o Ministério da Economia. Olhe o absurdo: o MEC está lá como convidado. Em 2016, quando eu estava envolvida com o Mapa Educação, pedimos a candidatos à prefeitura de três capitais que gravassem um vídeo tratando de suas prioridades para o ensino. Resposta de um conhecido político que disputava a cadeira em São Paulo: “Educação não é minha área”. Espanta-me como no Brasil as pessoas conseguem se eleger sem se comprometer minimamente com algo tão crucial.
A propósito do financiamento para a educação, o governo federal acaba de anunciar cortes em ministérios, e o mais atingido foi o MEC. Afinal, falta dinheiro na escola? O Brasil tem um nível baixo de investimento por aluno em comparação com outros países, mas também precisa fazer um melhor uso das verbas disponíveis combatendo corrupção e má gestão. Ou seja, trata-se de questão complexa, e não dá para escolher nenhum dos dois extremos e se agarrar a ele. Professor ganha mal para fazer o que faz e poderia ter carreira melhor? É verdade, mas o debate não pode deixar de levantar um ponto central: a formação é equivocada — genérica e teórica demais. Devemos fugir da abordagem superficial de assuntos sérios.
A direita a critica por ser de esquerda, e a esquerda a acusa de ser de direita. Como a senhora se classifica no espectro ideológico? Sou progressista, termo mais atual do que esse rótulo de esquerda e direita de 200 anos atrás. Mas, se formos nos ater a ele, estou no campo da centro-esquerda.
A senhora se apresenta como expressão da nova política, mas saiu candidata pelo velho PDT. Não é uma contradição? Primeiro, não existe um sistema para candidaturas independentes no Brasil. Quando fui escolher um partido, acabei no PDT por me afinar com a linha para a educação. Ajudei na campanha do Ciro Gomes e cheguei a trabalhar em Sobral (cidade cearense campeã em estatísticas da educação, governada há mais de duas décadas pela família Gomes e aliados). Renovação na política não passa por trocar o nome das coisas nem o rostinho no poder, mas por uma mudança de práticas.
A senhora já detectou más práticas neste breve período de mandato? Há uma clara divisão de grupos na Câmara. Alguns deputados estão motivados por causas, como eu com a educação; outros, por demandas locais, no que não vejo problema nenhum. E tem aqueles que fazem as grandes negociações. São mundos paralelos.
E os grupos envolvidos em práticas menos republicanas? Não posso apontar o dedo para ninguém sem ter evidências.
O PDT se posicionou contra a reforma da Previdência tal como está posta. A senhora já se manifestou inúmeras vezes a favor de uma reforma. É uma situação desconfortável? Não. Se alguém se assusta por eu apoiar uma reforma da Previdência, não acompanha o que digo e escrevo, portanto não há desconforto nenhum. Sou a favor, sim, de uma mudança, mas vejo fragilidades graves na proposta do governo no que tange a pessoas mais vulneráveis, como aposentados rurais e professores. Estou estudando o tema. E vamos apresentar alternativas, ponto a ponto, objetivamente. Não dá mais para fugir desse debate. O Brasil precisa encará-lo.
Qual sua avaliação sobre a política externa do governo Bolsonaro, que está sob forte influência dos Estados Unidos? Como cientista política, acho que o Brasil se colocava em uma posição muito interessante para seu tamanho e relevância: prezava a neutralidade e a mediação de conflitos. Preocupa-me que o país deixe essa tradição e comece a escolher um lado. Vejo com precaução a postura de seguir cegamente os Estados Unidos. A gente tem uma economia diferente, sela negócios com países distintos. O que faz sentido para americanos não necessariamente faz para brasileiros.
“Colegas da Harvard competiam por vagas no governo. Queriam trabalhar na Casa Branca. Aqui, eu ouvia: ‘Você é mesmo candidata?’. Achavam que não era para mim”
Algumas pessoas a têm comparado a Alexandria Ocasio-Cortez, a democrata que representa a novidade à esquerda na política americana. Já lhe ocorreu o paralelo? Eu me identifico com o fato de ela ser uma pessoa comum, sem um sobrenome que a tenha alçado àquele lugar, e agir de forma independente quanto ao posicionamento ideológico. Não é só um rosto novo para inglês ver.
O que ouviu quando decidiu entrar para a política? O primeiro choque veio antes, quando resolvi me concentrar em ciências políticas e deixar a astrofísica como um curso secundário. Sentenciaram: “Você está comprometendo o seu futuro”. Queria encontrar uma maneira de aplicar meus estudos para evitar que se repetisse a trajetória de tanta gente com quem convivi e que acabei perdendo para a violência e as drogas, como meu próprio pai. Daí a educação, daí fazer política pública. Engraçado que meus colegas da Harvard competiam pelas melhores vagas no governo. Queriam trabalhar na Casa Branca. Aqui, todo mundo me questionava: “Você é mesmo candidata?”. Achavam que a política brasileira não era para mim.
O presidente do PDT, Carlos Lupi, ventilou seu nome como potencial candidata à prefeitura de São Paulo nas eleições do ano que vem. A ideia lhe agrada? Parece-me muito cedo para qualquer conversa nessa direção. Reitero meu compromisso de exercer os quatro anos de mandato na Câmara, honrando os votos que recebi.
Estranham a presença de alguém tão jovem no Congresso? Muito. Nos primeiros dias, os guardas me barravam, perguntavam onde tinha achado aquele pin (que funciona como crachá). “A senhora não é deputada estadual?”, um deles quis saber. Depois vieram as questões dos deputados mais velhos. “Você é de alguma família Amaral?” Não. “É herdeira de empresa?” Não. “É casada com alguém importante?” Não. “Então o que essa menina está fazendo aqui?” Trabalhando.
Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629
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