A cena, isolada, pode confundir a cabeça de muitos eleitores: na traseira de um carro conversível, o presidente Lula e o governador do Paraná, Ratinho Junior (PSD), desfilaram lado a lado numa solenidade em São José dos Pinhais na semana passada. No chão, operários se amontoavam para registrar a cerimônia que celebrava um investimento bilionário de uma montadora de automóveis. Lula e Ratinho, como se sabe, são adversários políticos — e não só. Nas eleições de 2022, o petista foi derrotado por Jair Bolsonaro no estado, viu a ascensão política de desafetos como o ex-juiz Sergio Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol, e até hoje acumula altíssimos índices de rejeição entre os paranaenses. Uma pesquisa divulgada recentemente mostra o fosso que existe entre o presidente e o governador. Enquanto Ratinho, um dos nomes cogitados para enfrentar o próprio Lula em 2026, contempla índices de aprovação que chegam a 70%, o presidente registra apenas 35% de avaliações positivas. Essa aproximação dos dois, dividindo o mesmo palanque e até trocando afagos em alguns momentos, em tese não faz muito sentido. Mas ela é parte de uma estratégia do governo.
Desde que foi eleito, Lula se comprometeu a abrir as portas do Planalto para os 27 governadores do país, independentemente de suas colorações partidárias. “Um presidente da República não pode ter inimigo, não pode gostar de um estado e não gostar de outro”, sintetizou. Para mostrar que não era apenas discurso, pediu aos governadores que indicassem obras para serem incorporadas ao PAC, programa vitrine do PT. Quando a obra é concluída, o cerimonial do Planalto organiza tudo para permitir que os envolvidos possam colher dividendos eleitorais da inauguração. Todos são lembrados: o presidente que entregou, o governador que prometeu, o senador que mandou a verba, o deputado que se empenhou, o vereador que teve a ideia… Em geral, esses eventos são planejados por políticos do PT, que reúnem sindicalistas e militantes em uma claque que garante a animação da solenidade e os aplausos necessários. O problema é quando esse roteiro se passa em território inimigo.
Sob o pretexto de romper a polarização e praticar a política da boa vizinhança, o governo tem priorizado incursões em estados onde Lula foi derrotado nas eleições de 2022. As experiências já resultaram em boas imagens, servem como exemplo de civilidade, mas também provocam confusão, constrangimentos e discussões alimentadas pelo próprio presidente. No fim de julho, por exemplo, Lula participou de cerimônia de entrega de novas unidades do Minha Casa, Minha Vida em Mato Grosso, onde o ex-presidente Jair Bolsonaro obteve 65% dos votos. Durante o evento, um grupo de cerca de 200 militantes petistas se posicionou em frente ao palco e dirigiu uma sonora vaia ao governador Mauro Mendes (União Brasil), cujo eleitorado é majoritariamente de direita. Lula tentou intervir: “As pessoas estão na nossa casa porque a gente convidou. A gente tem que respeitar, a gente não enxota convidado nosso”, disse o presidente, sem muito sucesso. Sob vaias, o governador destacou sua “alegria” em receber o petista. Em entrevista a VEJA, Mendes afirmou que não se surpreendeu com a recepção. “Tenho maturidade para encarar isso com naturalidade. Eu respeito o presidente Lula, embora nós tenhamos divergências, e toda vez que ele vier ao meu estado será bem-vindo e muito bem recebido”, disse.
Apesar do constrangimento, interessa a alguns governadores tidos como adversários manter uma relação amistosa com o governo federal. Lula, mais do que ninguém, sabe e tira proveito disso. O presidente tem dedicado especial atenção, por exemplo, ao Rio Grande do Sul, para onde já foi cinco vezes desde que a região foi devastada por uma inundação. No último dia 16, durante uma solenidade de entrega de casas para famílias desabrigadas, ele e o governador Eduardo Leite (PSDB) intercalaram afagos e alfinetadas. Ao discursar, o presidente afirmou que o problema no estado não foi só das chuvas. Afirmou, sem dar nomes, que, se tivessem tomado o devido cuidado com os diques e as bombas de água, a tragédia não teria ocorrido. “É importante a gente dizer essas coisas para que o pessoal saiba definitivamente o que aconteceu”, afirmou Lula, numa indireta ao governador, ao mesmo tempo que ele era hostilizado pela claque petista que pedia sua saída do cargo. Ao discursar, Leite lembrou que também investiu recursos do estado na construção das casas, celebrou a parceria e, devolvendo a indireta, disse que a “claque” de Bolsonaro também o atacava. Lula não gostou e rebateu. “Apenas um recado ao governador: Eduardo, se o outro presidente da República trazia a claque para te vaiar, quem está aqui são trabalhadores, não são claques”, disse, insuflando novamente os apoiadores presentes, que elevaram o tom dos apupos.
Alguns governadores fogem do que consideram uma armadilha eleitoral. No início do mês, Lula foi pela primeira vez desde que tomou posse a Santa Catarina, um dos bastiões do bolsonarismo no país, para inaugurar uma obra viária em Florianópolis. Ele estava acompanhado de quatro ministros, que exaltavam o investimento de quase 4 bilhões de reais. No palco, a ausência do governador Jorginho Mello (PL) foi ressaltada — e Lula não perdoou. Ao discursar, afirmou que gosta “de trabalhar, e não de motociata” e que Mello seria tratado com respeito se estivesse no evento. “Lamentavelmente, tem gente que pensa pequeno, tem gente que age pequeno e não enxerga a necessidade do povo brasileiro”, disse o presidente. O governador devolveu a crítica, afirmando que “não precisa de palanque nem de faixa” para inaugurar “uma obra privada que estava atrasada havia mais de doze anos”.
Da mesma maneira, o governador de São Paulo tem evitado comparecer a eventos ao lado do presidente. O último encontro entre Lula e Tarcísio de Freitas no estado aconteceu em fevereiro, durante uma cerimônia do Porto de Santos recheada de gestos que destacavam a “normalidade” e promessas de uma “parceria” na relação. O governador passou por um duplo constrangimento. Inicialmente vaiado pela claque, foi ovacionado depois que Lula lembrou que ele havia trabalhado como assessor no governo Dilma. Houve gritos para que ele se filiasse ao PT. Depois disso, apesar das diversas idas do presidente ao estado, Tarcísio não atendeu mais aos convites. Sempre que pode, Lula ressalta a ausência. No mês passado, em um evento, o presidente chegou a blefar dizendo que o contrato para a construção de uma estação de metrô — o motivo da solenidade — não seria assinado. Tarcísio ironizou: “Almoçando com a tranquilidade de quem sabe que o contrato já está assinado”. Por meio de sua assessoria, o governador informou que as ausências se devem a outros compromissos previamente agendados.
Apesar dos percalços, interlocutores do presidente afirmam que ele pretende continuar sua agenda de inaugurações, independentemente se são redutos de adversários políticos ou se os governadores estarão presentes. De acordo com Sidônio Palmeira, marqueteiro e conselheiro de Lula, os governadores assumem os desgastes e os danos de imagem ao não comparecerem às solenidades. “Se tem uma obra que seja do interesse do povo daquele estado e o governador simplesmente não aparece por motivos políticos, o efeito negativo para a imagem desse governador é maior não só pela indelicadeza da atitude, mas porque essa pessoa deixou de ir em algo importante por um motivo meramente ideológico.” Depois do desfile ao lado de Lula, Ratinho Junior disse a VEJA que não discute ideologia e que está focado em concretizar projetos que tragam trabalho e renda para a população do Paraná. “Participo de toda e qualquer agenda em que o interesse público esteja em jogo”, afirmou. Se o interesse público resulta em dividendos eleitorais ou constrangimentos, isso é só um detalhe.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907