Protagonista de um vídeo grotesco com ataques ao Supremo Tribunal Federal, entre outros crimes, e preso por isso desde o último dia 16 no Rio de Janeiro, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) conseguiu algo que pareceria improvável em outras situações: fazer com que os deputados deixassem o corporativismo de lado e mantivessem na cadeia um de seus pares por 364 votos a 130. Mesmo que em algum momento deixe a prisão, o parlamentar de muitos músculos e pouca razoabilidade ainda correrá o risco de cassação em um processo aberto no Conselho de Ética da Câmara na terça 23. O desempenho controverso, para dizer o mínimo, de Silveira, no entanto, não se limita ao seu comportamento fora da Câmara — e diante de uma câmera —, mas também ao que faz (ou deixa de fazer) dentro da Casa. Caso o seu mandato seja abreviado, não se poderá dizer que o país perdeu um grande legislador: após dois anos de mandato, nenhum dos 47 projetos de lei propostos pelo parlamentar ou que ele assinou como coautor viraram lei, tampouco algum dos seis projetos dos quais ele é ou foi relator. Ou seja, efetividade zero.
Mas o polêmico ex-cobrador de ônibus e ex-policial militar não está sozinho na turma do fiasco legislativo. Ele é um dos 108 que chegaram à Câmara em 2018 sem nunca terem ocupado qualquer outro cargo eletivo — nem de vereador —, naquele que foi o maior movimento de renovação na história da Casa. Como Silveira, no entanto, a grande maioria dos novatos que garimparam votos na onda da antipolítica alavancada pelo fenômeno Jair Bolsonaro não consegue fazer com que as suas ideias ganhem eco fora das bolhas das redes sociais, onde a maior parte deles construiu o seu eleitorado. E não é por falta de tentativa: embora tenha apresentado nada menos que 4 350 projetos, esse grupo conseguiu aprovar apenas quatro de autoria exclusiva, ou seja, sem incluir aqueles que eles assinaram em conjunto com outros parlamentares (confira no quadro abaixo). O discurso de que mudariam as práticas, empunhado na campanha eleitoral, se mostrou bem difícil em um ambiente que exige responsabilidade, enorme capacidade de articulação e — fundamental — deixar o celular de lado. “O Parlamento tem fila e quem está há mais tempo no Congresso já conhece todos os atalhos na burocracia”, observa o cientista político Carlos Melo, do Insper.
Mesmo nos raros projetos aprovados pelos estreantes, há pouco cheiro de revolução na política. Uma proposta, por exemplo, estende o prazo de validade de receitas médicas na pandemia. Na chamada pauta de costumes, um dos temas que mais contribuíram para mobilizar o eleitorado e impulsionar a proliferação de novatos, nada prosperou sob a presidência de Rodrigo Maia (DEM-RJ). A esperança da vez dos novatos é que o novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aliado do governo, dê algum espaço a esses temas. “Maia fez oposição ao governo em especial na pauta de costumes, que ele sabia que era o coração pulsante do movimento que levou o presidente ao poder. Não foi culpa dos deputados, foi culpa dele”, reclama o líder do PSL, Major Vitor Hugo (GO). Mas há liderado seu que já começou a entender a diferença entre o blá-blá-blá para as redes e a vida real. “Se você não abrir a cabeça e trabalhar pelo que realmente importa, além da bandeira dos costumes, vai ficar no ostracismo aqui dentro”, diz a médica bolsonarista Soraya Manato (PSL-ES), uma exceção, coautora de seis textos transformados em lei, todos da área da saúde.
Trabalhar pelo que realmente importa não foi exatamente o que fez Alexandre Frota (PSDB-SP), eleito pelo bolsonarismo, mas que passou para a oposição em 2019: o deputado decidiu atirar para todos os lados e apresentou 369 projetos. A tática não ajudou: ele figura como coautor de uma única lei sancionada, a Aldir Blanc, que criou medidas de auxílio ao setor cultural na pandemia. “Para que os projetos sigam para votação existe uma fila: a vontade do presidente da Câmara, do partido, o lobby que o deputado tem de fazer com o partido e os líderes”, justifica. Mas reclamar da falta de experiência e da pouca influência política dentro da Casa não é um bom argumento porque alguns deles tiveram chances para isso e não aproveitaram. Carla Zambelli (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF) e o próprio Daniel Silveira foram vice-líderes do governo por dois meses e meio, um ano e quatro meses, e dez meses, respectivamente, mas não mostraram a que vieram e foram substituídos pelos profissionais do Centrão quando Bolsonaro resolveu que precisava fazer a sua agenda andar no Congresso.
Um dos problemas sempre foi a pouca capacidade desse grupo para dialogar com quem pensa diferente. Bia Kicis, por exemplo, que vê “comunistas” em todo canto e adora espalhar fake news, tem pouco ou nenhum trânsito com outras correntes políticas e só passou a acenar a elas quando foi cotada para assumir a poderosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) — seu nome foi amplamente criticado exatamente em razão do perfil. “Eles acham que as redes sociais produzem política pública na Câmara”, diz Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. “Isso é um equívoco, política é produto de persuasão, convencimento”, completa.
É claro que a importância de um parlamentar não se mede apenas pelo número de propostas concretizadas. Tabata Amaral (PDT-SP), que teve apenas dois projetos aprovados (ambos coletivos), e Felipe Rigoni (PSB-ES), com uma lei sancionada, foram coautora e relator da regulamentação do Fundeb, uma discussão importante na Casa em 2020. Kim Kataguiri (DEM-SP) também é uma voz ouvida no debate político e se tornou relator da Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Outros, como os deputados do Novo, atuam ativamente nos debates sobre economia e papel do Estado. Parlamentares estreantes da sigla, porém, tiveram seus nomes em apenas seis projetos aprovados, todos coletivos — um deles, sobre o uso da telemedicina durante a pandemia, partiu da deputada Adriana Ventura e ganhou coautores. O líder, Vinicius Poit (SP), pede tempo para as mudanças. E critica a turma que quer impor as suas ideias na marra. “Vejo muita gente preocupada com likes e pouca preocupada com resultados”, reclama.
As dores da estreia na política têm diagnósticos variados, que vão de bandeiras que foram ficando pelo caminho à dificuldade de serem ouvidos em uma arena onde quem dá as cartas — cada vez mais — são os profissionais da política. De qualquer forma, passada a metade do mandato, há um desafio que começa a se impor àqueles que surfaram na onda da nova política: o que vão dizer na campanha de 2022? Em 2018, muito barulho e o discurso adequado para o momento levaram ao triunfo nas urnas. Agora, terão de encontrar novos discursos para convencer o eleitor — ou mostrar algum serviço nos próximos dois anos.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727