Uma das mais proeminentes figuras da política francesa, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, 64 anos, tem nas mãos a complexa tarefa de manter azeitadas as engrenagens para pôr de pé a Olimpíada, que, a partir de 26 de julho, tomará os cartões-postais. Há uma década no posto que a projetou nacionalmente, a ponto de ter entrado no último duelo presidencial concorrendo pelo Partido Socialista, sem sucesso, ela vem colecionando ruidosas brigas que ecoam pelos bulevares, onde a vida do motorista anda cada vez mais dura, com a radical aplicação de uma cartilha que prioriza zonas verdes e muita bicicleta. Nascida no sul da Espanha, Hidalgo, que sorve inspiração no pensamento de Simone de Beauvoir (1908-1986), celebrou, na segunda-feira 4, a inclusão do direito ao aborto na Constituição do país, avanço sem precedentes que ajuda a neutralizar a onda conservadora que atropela o debate planeta afora. Instalada no emblemático Hôtel de Ville, edifício ao estilo renascentista que serviu de cenário para capítulos que chacoalharam a história (como o anúncio por Charles de Gaulle da liberação da cidade das garras nazistas, em 1944), ela recebeu VEJA nas dependências onde há um pôster de Frida Kahlo, uma camisa com seu nome gravado do Paris Saint-Germain, pelo qual entusiasticamente torce, e folhetos olímpicos. “Paris não será mais a mesma”, promete nesta entrevista, em que também fala do avanço da extrema direita, de Lula e de moda.
A senhora tem dito que Paris será outra depois dos Jogos. O que vai mudar? Entre as metrópoles globais, Paris está caminhando para ser a mais sustentável de todas. E a trilha para chegar lá não envolve uma transformação cosmética, mas mexidas profundas na paisagem e no modo de viver. Isso tudo num lugar antigo, o que impõe o desafio adicional de mudar e, ao mesmo tempo, proteger tão rico patrimônio. Nestes meus anos à frente da prefeitura, foram plantados milhares de árvores que já formam novos bolsões verdes e áreas de lazer. Também estamos radicalmente estimulando o transporte de bicicleta, com pistas por toda parte, e fazendo de tudo para frear a expansão da frota de carros. Até a arquitetura começa a se ajustar aos tempos atuais. Uma cidade moderna não pode seguir em frente sem considerar a questão climática, e os Jogos estão ajudando a dar essa virada de página.
Se está indo tudo tão bem, por que tantos franceses andam irritados com a Olimpíada? Historicamente, sempre houve na França esse espírito rebelde. Assim somos, faz parte da nossa identidade. As pessoas se queixam em relação aos transtornos trazidos pelos tratores, desconfiam do resultado, temem a invasão de turistas. Certa vez, Thomas Bach (o presidente do COI) me disse: “Calma que, quando os Jogos começam, tudo vira festa”. Aposto nisso.
Os motoristas estão particularmente contrariados, sobretudo após a senhora propor um plebiscito que acabou por triplicar o preço do estacionamento para veículos grandes, como os SUVs. Eles têm um quê de razão? Não dá para manter uma cidade como Paris na rota do avanço sem cutucar vespeiros. Para se ter uma ideia, 95% das áreas públicas aqui eram voltadas para carros, uma lógica que estamos rompendo aos poucos (leia na pág. 72). Apenas um de cada três moradores tem um veículo na garagem, e esses precisam se adaptar em prol de uma ideia mais ampla, de conter a poluição. Quando gente cuja rotina ficou mais difícil me pergunta como vai se locomover, respondo: “Pegue o metrô.”
“Tanto já se falou ao longo da história sobre a limpeza do Sena que os parisienses até deixaram de acreditar. Mas garanto: vou mergulhar lá antes dos Jogos”
Trinta anos atrás, o então prefeito, Jacques Chirac, garantiu que, tão logo o Rio Sena estivesse limpo, ele nadaria ali, mas isso nunca ocorreu. A senhora fez promessa semelhante. Vai cumprir? Vou mergulhar lá, sim, e já tem até data — entre fim de junho e início de julho. Meu filho, inclusive, fez isso, na região de Le Havre, a 200 quilômetros de Paris. Nadar no Sena abrirá uma janela de lazer para moradores e visitantes neste mundo em que os termômetros em elevação são uma realidade concreta. Tanto já se falou sobre limpar o rio que os parisienses até deixaram de acreditar. Mas garanto: vai acontecer.
A senhora anunciou que, em nome da sustentabilidade, não haverá ar-condicionado na Vila Olímpica. Não é castigar demais os atletas nestes dias abafados? Não temos o hábito de ar-condicionado, como nos Estados Unidos ou no Brasil. E, com os materiais que estamos empregando, mais a posição das construções em relação ao vento e à luz, a sensação térmica na Vila permanecerá razoável. É um modo diferente de pensar a arquitetura, olhando para o futuro, uma prova de engenhosidade humana. Agora, o atleta que quiser trazer o seu próprio aparelho, que se sinta à vontade.
Os preços dispararam na cidade, que já é cara. Como fazer deste um espetáculo para todos, como a senhora defende? Estão espalhando que os ingressos em Paris serão os mais caros da história dos Jogos, mas isso é fake news. Em torno de 50% das entradas custarão menos de 50 euros e, para a cerimônia de abertura no Sena, uma parcela será gratuita. O valor dos hotéis está nas alturas mesmo e tenho feito um trabalho de conversar com os donos desses grupos para avisar: o preço pode jogar contra.
A segurança na festa de inauguração da Olimpíada, às margens do Sena, a preocupa? Sim, e muita atenção vem sendo dada, junto com o Ministério do Interior e com os encarregados pela segurança, para que tudo corra bem. É uma operação delicada, mas, a favor de Paris, pesa o fato de a cidade ter expertise em abrigar grandes eventos.
Qual a sua avaliação sobre o legado olímpico no Rio de Janeiro? O Rio soube aproveitar sua chance. Lembro daquela área do porto, no Centro, em transformação, e do Eduardo Paes falando: “Botar uma Olimpíada de pé é uma loucura”. E é mesmo. Sei que houve uma troca de governo, e as coisas deram uma parada. Um trabalho desses exige continuidade. Gosto também do caso de Londres, mas ali as intervenções ficaram mais concentradas numa zona da cidade. Em Paris, abrange tudo, da Torre Eiffel ao subúrbio.
E quanto à praga dos percevejos? Alguma chance de atrapalhar a celebração? Sempre houve e sempre haverá percevejos em Paris. A notícia de que eles haviam se alastrado foi manipulação da Rússia. Segundo um relatório da inteligência francesa, eles amplificaram a história nas redes, dando ao problema contornos que não tinha.
Como impedir o avanço da extrema direita em seu país, capitaneada por Marine Le Pen? Do jeito que a coisa anda, estamos é nos preparando para lhe dar a chave do poder. Vivemos uma crise democrática no planeta, com nomes como Jair Bolsonaro e Donald Trump ganhando espaço. Isso ocorre quando não se dá a necessária atenção ao movimento desses populistas, minimizando o perigo no lugar de combatê-lo. Neste cenário, grandes cidades como Paris têm papel essencial, uma vez que concentram uma mescla de pensamentos e gente mais progressista.
Como avalia o governo de Emmanuel Macron? Respeito o presidente e as instituições, mas não posso concordar com uma política que vem destroçando o modelo social francês, uma fundamental herança do período pós-Segunda Guerra. Embora não tenha relação com Macron, uma pessoa arrogante, atuamos bem junto a seus representantes, em prol dos Jogos.
A senhora é a favor do acordo União Europeia-Mercosul, que se arrasta nas negociações? Não. Podemos fazer um acordo com o Mercosul, mas não esse que está posto à mesa. Para funcionar, as duas partes precisariam se beneficiar em igual medida. Nesse caso, nós saímos perdendo. Como dizer aos agricultores que devem respeitar certas normas ecológicas, enquanto os países com os quais estamos selando negócios, não? E os preços de fora matam nossa agricultura. Isso não nos interessa.
Como foi seu encontro com o presidente Lula, em 2023? Tenho muita admiração por Lula, sua história, carisma e disposição para enfrentar a pobreza. Sempre conversamos bem. Na última vez, ele me perguntou: “O que está se passando com a esquerda aqui?”. Penso diferente dele, porém, na maneira de ver a Rússia hoje. Para mim, Putin é um ditador e uma ameaça ao mundo democrático, sem relativizações. Acho que a posição de Lula tem a ver com a luta contra o imperialismo americano do passado. Isso ainda pesa fortemente na América Latina.
A senhora encampa bandeiras feministas? Sou 100% feminista. As mulheres ainda são mais cobradas do que os homens no trabalho, em casa, e o mundo não lhes dá grandes oportunidades. Em pleno século XXI, somos pouco assimiladas nos círculos de poder, o que é um gargalo à própria democracia. Muitas vozes femininas têm rara potência para brigar por liberdades e avanços civilizatórios. Me tornei a primeira mulher prefeita em toda a história de Paris. Já poderíamos ter alcançado um ponto mais alto neste momento da caminhada.
“Admiro Lula, seu carisma e história, mas pensamos diferente sobre a Rússia. Putin é um ditador, uma ameaça ao mundo democrático, e, para mim, não há relativizações aí”
Catherine Deneuve e um grupo de francesas publicaram uma petição no jornal Le Monde condenando o movimento #MeToo por “criar um clima totalitário” e “minar a liberdade sexual”. Concorda? Não concordo com Deneuve. Apoio o #MeToo, que teve o mérito de abrir um espaço essencial para as mulheres se manifestarem sem ser desacreditadas.
A senhora esteve recentemente com Anna Wintour, a papisa da moda da revista Vogue. Aprecia a área, tão arraigada à cultura francesa? Admiro o trabalho das grandes cabeças criadoras da moda, movidas pelo propósito de olhar para as ruas e traduzir o espírito de seu tempo. Em minha vida como prefeita, ando na linha, mas, francamente, longe do gabinete fico feliz de calça jeans. No encontro com Wintour, aliás, ela disse que é em Paris que reside a verdadeira energia destes tempos. Me senti até como a personagem de Emily em Paris (série cuja protagonista vive a cultura francesa com olhos americanos).
A propósito, picharam locações da série na cidade. Por que uma ala dos parisienses não gosta de Emily? Sempre aparecem uns imbecis de plantão para criticar. Eu, pessoalmente, acho a série interessante. É como um conto sobre Paris, um bom cartão-postal.
Londres é tão ruim como se ouve nos bulevares parisienses? Gosto de Londres. É cosmopolita como Paris. Mas nós somos mais rebeldes, e isso serve de empurrão à criatividade em todos os departamentos: econômico, artístico e, agora, na área da sustentabilidade.
Boris Johnson foi alçado da prefeitura nos tempos olímpicos ao topo do governo no Reino Unido. A senhora ambiciona trajetória semelhante? Não planejo hoje me candidatar novamente à presidência da França, embora não me feche a um terceiro mandato na prefeitura. Neste momento, só penso mesmo em ter nos Jogos um trampolim para fazer de Paris uma cidade voltada para o futuro.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883