Sonia Guajajara entrou na Esplanada do terceiro governo Lula com o desafio de ser a primeira ministra dos Povos Indígenas do país. Nascida na terra Arariboia, no Maranhão, a representante da etnia que lhe deu o sobrenome conseguiu se formar em letras e enfermagem na Uema e se destacou pelo ativismo ambiental e defesa dos direitos dos habitantes originários. Filiada ao PSOL, foi vice na chapa de Guilherme Boulos na campanha presidencial de 2018 e eleita deputada por São Paulo em 2022. No mesmo ano, entrou para a lista das 100 pessoas mais influentes do mundo da revista americana Time. Mal tinha assumido o cargo no ministério quando se deparou com a tragédia humanitária na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, onde a invasão por garimpeiros culminou em centenas de mortos e uma infinidade de casos de desnutrição e malária. Após mais de um ano, o governo ainda não conseguiu retirar todos os invasores e o número de mortes aumentou. Autora de polêmica frase em 2023, quando revelou “certa frustração” com Lula após o petista retirar a demarcação de terras de sua alçada, a ministra avalia que os recursos da pasta que comanda são escassos para o volume de problemas. “Ainda precisa muito para a gente ter uma estrutura suficiente”, afirma. Em entrevista a VEJA, ela fala também sobre a dificuldade para lidar com um Congresso conservador e prevê o aumento de conflitos de terra caso o Supremo não derrube o marco temporal aprovado pelo Legislativo.
A senhora iniciou sua gestão com a crise ianomâmi. Um ano depois, por que o governo ainda não conseguiu acabar com o flagelo humanitário na região? Sempre achei que seria impossível acabar com toda essa crise em um período tão curto. Não é recente, é um problema histórico que se acentuou nos últimos seis anos com o abandono do poder público, a falta de assistência em saúde e a incitação à exploração do território por invasores, com a promessa de que poderia ser regularizada a mineração nos territórios indígenas. Não era apenas uma crise sanitária. São muitos problemas e não é possível acabar com eles a curto prazo. A gente acompanhou, fizemos um esforço interministerial, trabalhamos um ano inteiro e continuamos trabalhando para acabar com essa crise.
O que falta ser feito? Ainda há a necessidade de operações para retirar os garimpeiros que, insistentemente, permanecem no território. E não só eles; tem o crime organizado, que também resiste em sair. Isso exige cuidado para não gerar mais violência contra indígenas. É preciso retirar esses invasores todos para que possamos garantir segurança aos indígenas e a entrada das equipes de saúde e da Funai para fazerem o seu trabalho sem essas ameaças, sem esse perigo.
“A crise dos ianomâmis não é recente, é um problema histórico que se acentuou nos últimos anos com o abandono do poder público, a falta de assistência e a exploração do território”
As Forças Armadas e a Polícia Federal estão lá justamente para garantir a segurança e retirar os invasores. Quais as dificuldades? Estamos em uma nova etapa, fazendo o replanejamento das ações e implementando a presença permanente do Estado na região. Acabamos de instalar a Casa de Governo para fazer esse acompanhamento e estamos trabalhando para ampliar a presença do Ibama e das forças de segurança para retirar os invasores e evitar a volta de quem saiu.
Como evitar que os indígenas sejam aliciados pelas facções criminosas que hoje atuam em áreas demarcadas? O aliciamento é uma realidade, não só no território ianomâmi, mas em vários outros lugares. Os caras chegam e assediam, aliciam, e todo mundo está sujeito a ceder em qualquer lugar, seja na terra indígena, seja na periferia das cidades. Isso acontece. A única solução é retirar os garimpeiros de lá e devolver a segurança para que os indígenas possam retomar seu modo de vida próprio. Isso foi discutido no fórum dos ianomâmis, estamos construindo com eles essas alternativas.
A senhora é alvo de muita pressão ou ameaças por conta da sua atuação à frente do ministério? Sim. A pressão vem de todos os lados, até do Congresso Nacional, já que nossas pautas são totalmente divergentes. Enquanto eu defendo a retirada dos invasores, a proteção do território, a segurança dos indígenas, a demarcação de terras, temos um Legislativo que é totalmente contra essas propostas. Há ainda uma grande expectativa dos próprios povos indígenas de que tudo se resolva de imediato. É natural essa expectativa porque é realmente uma necessidade. Eu não considero isso uma pressão ou uma crítica, mas é um passivo que o Estado brasileiro tem para com os habitantes originários.
Os indígenas enfrentaram uma derrota no Congresso no fim de 2023 com a derrubada do veto de Lula ao marco temporal. Faltou articulação política do governo? Não é que tenha faltado articulação. A realidade é que temos um Congresso com maioria anti-indígena, que apresentou esse projeto de lei do marco temporal mesmo diante da decisão do STF que considerou a tese inconstitucional. Fizemos articulação com líderes de governo, com comissões, com parlamentares, no meu gabinete, mas não teríamos votos suficientes para derrubar a proposta. A articulação foi feita, os diálogos ocorreram, mas, infelizmente, eles têm ampla maioria nesse tema.
Já há registros de aumentos de conflitos de terra ou de questionamentos às demarcações feitas? Sim, já tem vários movimentos. Inclusive esse movimento “Invasão Zero”, que acabou gerando uma morte na Bahia em janeiro, está crescendo e se fortalecendo em vários estados. É uma organização totalmente criminosa, que tenta fazer justiça com as próprias mãos, retirando indígenas de determinadas áreas. Há grupos armados pedindo para os indígenas saírem. De fato, enquanto não houver uma reafirmação do Supremo de que o marco temporal é inconstitucional, esses conflitos vão crescer. A gente vem trabalhando para evitar, mas há uma articulação de setores para pressionar e criar conflitos em alguns estados.
O agronegócio costuma ser acusado de atrapalhar o avanço das pautas indígenas. O que acha? Temos pautas bem diferentes. O agronegócio tem seu interesse em aumentar a produção e para isso precisa de mais terras. Então existe uma pressão histórica de setores ruralistas sobre as áreas indígenas. Isso é fato no Brasil. Já a gente vem lutando para retomar espaços dos povos originários que foram entregues de forma ilegal a esses setores, em muitos casos pelo Estado. As terras indígenas são muito bem definidas, são aquelas consideradas tradicionalmente ocupadas. Não brigamos por áreas que sejam propriedades privadas. Lutamos por locais que são reivindicados com respaldo legal na Constituição.
A senhora encaminhou uma lista de terras para demarcação quando assumiu. Como está a situação desses pedidos? Das quatorze que apresentamos no início de 2023, oito foram homologadas. Temos seis na fila e estamos trabalhando para que a demarcação delas saia este ano. Há uma articulação para que as áreas que não foram afetadas pelo marco temporal possam ser assinadas. Os vetos de Lula foram derrubados, a gente não pode fazer atos que infrinjam essa lei, então estamos mapeando as terras e, ao mesmo tempo, articulando para que o Supremo Tribunal Federal se posicione sobre o tema para que possamos avançar com as demarcações.
O cacique Raoni, uma das principais lideranças indígenas do país, disse que Lula não cumpriu o que prometeu no dia da posse com relação à proteção dos povos originários. O que achou da declaração? Acho natural que o cacique tenha o seu ponto de vista, mas ainda não passou da hora de cumprir tudo que foi prometido. Afinal de contas, temos um passivo muito grande e estamos trabalhando para cumprir. Homologamos oito terras indígenas em menos de um ano, sendo que em dez anos foram apenas onze áreas demarcadas. Estamos fazendo a desintrusão de terras indígenas, retirando garimpeiros, grileiros e madeireiros. Essas medidas estão em curso, já fizemos em quatro áreas. Também há esse investimento permanente no território ianomâmi.
O que falta para avançar mais rápido? Esse é um trabalho complexo, precisamos de segurança, estrutura e articulação para que essas ações aconteçam. Estamos implementando planos de gestão, retomamos o Conselho Nacional de Política Indigenista, que será instalado neste ano. Temos muitas coisas realizadas e que precisam ser mostradas para que as pessoas saibam o que estamos fazendo. Às vezes dizem que falta isso ou falta aquilo, mas também falta às pessoas conhecer as ações que estão sendo realizadas.
“A pressão vem de todos os lados, até do Congresso, já que nossas pautas são totalmente divergentes. Há ainda uma grande expectativa dos povos indígenas de que tudo se resolva de imediato”
Por que levou tanto tempo para a criação de um ministério dedicado à questão indígena? De fato, demorou séculos para ocuparmos cargos estratégicos, como o ministério e a presidência da Funai. Isso decorre da marginalização dos povos indígenas ao longo do tempo. Lula teve uma coragem incomparável ao atender a essa demanda e criar esse ministério. Com atraso, claro, mas em um momento muito oportuno.
A estrutura que tem no ministério hoje, como orçamento e efetivo de pessoal, é suficiente? Acho que vários ministérios estão na mesma berlinda. Ainda falta muito para termos uma estrutura suficiente, afinal de contas, temos problemas grandiosos a ser resolvidos. Estamos trabalhando como um ministério articulador, temos a Funai, que é nosso órgão executor, mas atuamos de forma compartilhada. Por isso, com os recursos sendo insuficientes, buscamos articulação com outras pastas que têm mais estrutura. A orientação do presidente Lula é que seja um trabalho transversal entre os ministérios. A política indígena não se resume ao Ministério dos Povos Indígenas; temos a educação, a saúde, o meio ambiente, as ações de segurança alimentar com o Ministério do Desenvolvimento Social, a estratégia de segurança com o Ministério da Justiça. A política indigenista está distribuída em várias pastas.
Acha que a causa indígena e as questões ligadas à preservação da Amazônia podem ser beneficiadas com a realização da COP30 em Belém, em 2025? Temos uma grande expectativa. É a hora de a Amazônia falar com o mundo em vez de o mundo falar pela Amazônia. Essa desintrusão das terras indígenas feita pelo governo e o avanço da demarcação de terras são medidas que vão permitir zerar o desmatamento até 2030. Os povos originários se apresentam como uma das últimas alternativas para conter as mudanças climáticas. Esperamos apoio para ser protagonistas e parte da solução para essa crise.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889