Na segunda-feira 3, no dia seguinte ao primeiro turno, Jair Bolsonaro e Sergio Moro se falaram pela primeira vez desde que o ex-juiz da Lava-Jato pediu demissão do Ministério da Justiça, em abril de 2020, depois de afirmar que o governo não priorizava o combate à corrupção e acusar o presidente de tentar interferir na Polícia Federal para proteger os filhos. Foi o início de uma reaproximação tática que culminaria com o surpreendente aparecimento do ex-juiz ao lado do presidente da República no debate do último domingo. Há interesses políticos de ambos os lados nesse reencontro. Mas a cena do debate tinha um único objetivo: constranger Lula, colocando o candidato petista frente a frente com seu principal algoz. O plano, acertado entre ambos, foi mantido em sigilo até a hora do programa. Seguindo o script, Moro entrou nos estúdios da TV Bandeirantes minutos antes do início do confronto, seguiu direto para o palco, onde cumprimentou Bolsonaro, gesticulou e cochichou algo no ouvido do presidente, como se estivesse passando alguma orientação. Depois, sentou-se na área reservada aos convidados, bem à frente do petista. Em entrevista a VEJA, o agora senador eleito relativiza o apoio ao presidente da República, explica que a reaproximação tem o combate à corrupção como linha mestra e afirma que a Justiça tem passado a impressão de que o crime compensa.
Como foi a reaproximação com o presidente? O presidente me ligou para conversar sobre o posicionamento no segundo turno e, na minha interpretação, para estabelecer uma ponte e falar sobre o futuro. Para mim o projeto do Lula é inaceitável, é dizer que o crime compensa. Foi muito fácil me posicionar nessa perspectiva contra o Lula e contra o PT. Todos conheceram os escândalos de corrupção do tempo do PT: o mensalão, um esquema de suborno de parlamentares para obter apoio ao governo federal, e o petrolão, um sistema de corrupção vinculado a um projeto de poder. A volta disso seria um desastre do ponto de vista moral para o Brasil.
O senhor deixou o Ministério da Justiça acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal e hoje está de volta entre os apoiadores do presidente. Se fosse hoje, faria as mesmas acusações? Eu não reinterpreto o passado. O passado permanece como está. A gente tem de olhar para o futuro, trabalhar para fortalecer as nossas instituições e a democracia. Entre os meus projetos está a busca de maior autonomia dos órgãos de controle, inclusive da Polícia Federal. Defendo que tenha um diretor-geral da PF com mandato fixo, para que possa ser demitido em caso de má conduta ou manifesta insuficiência de desempenho, como ocorre no FBI. Independentemente de quem seja o governante, é importante que tenhamos órgãos de controle que estejam sempre operando.
Como o senhor avalia o trabalho do procurador-geral Augusto Aras, criticado pela inapetência em investigar atos do Executivo? O procurador Augusto Aras poderia ter uma postura mais ativa em relação a processos criminais envolvendo corrupção. Ele poderia ter apreço maior ao trabalho que foi feito na Lava-Jato, mas se posicionou de maneira excessivamente crítica a uma operação que foi uma conquista da sociedade. Esse trabalho merecia uma continuidade mais intensa por parte do Ministério Público.
“A única coisa que a gente ouve do Lula é que ele quer distribuir cerveja e picanha. Lembra um pouco os imperadores romanos, com o pão e circo. A volta do Lula seria um suicídio moral e econômico”
Em sua biografia, o senhor disse que Bolsonaro só pensava em proteger os filhos. Na época, afirmou a VEJA que Lula e Bolsonaro eram parecidos no aspecto ético. Não é um contrassenso agora assessorar o presidente em um debate na TV? Não há escândalos de corrupção comparáveis aos do governo do PT. A corrupção estava entranhada em toda a esfera da administração. Houve um aparelhamento da máquina pública para enriquecimento ilícito de agentes públicos e para a perpetuação no poder. Isso é perigoso para a própria democracia. Contra esse projeto do PT e do Lula eu preciso me posicionar claramente neste segundo turno, o que não significa que eu vou abandonar meu histórico e minhas pautas institucionais.
O que o levou especificamente a ir ao debate ao lado da equipe de Bolsonaro? Não faço parte da equipe do presidente, mas temos um adversário em comum. Como é que você vai chegar na sua casa e dizer para seu filho que ele tem de ser uma pessoa honesta, que ele tem de trabalhar e estudar, quando, depois de escândalos de corrupção, de repente se permite que as pessoas que estavam no centro dos acontecimentos retornem ao poder sem fazer qualquer espécie de expiação das suas responsabilidades?
A VEJA o senhor já disse que escolher entre Lula e Bolsonaro seria suicídio. O que mudou? Essa declaração foi dada em um momento em que estávamos tentando construir uma candidatura de terceira via. Agora temos um outro contexto e uma escolha tem de ser feita. A única coisa que a gente ouve do Lula é que ele quer distribuir cerveja e picanha. Lembra um pouco os imperadores romanos, com o pão e circo. Ele quer uma carta em branco. Quem vai ser o ministro da economia do PT? O que o Lula pretende para a economia? Os ministros da economia do PT que a gente conhece foram o Antonio Palocci e o Guido Mantega. Ambos fazem parte da captura da máquina pública em prol de interesses privados, do capitalismo de compadrio. A volta do Lula seria um suicídio moral e econômico para o Brasil.
O senhor vê espaço para que algo nos moldes da Lava-Jato ocorra mais uma vez no país? Não podemos deixar de levantar uma bandeira porque é difícil a sua aprovação. Temos de criar as condições necessárias para a aprovação no Congresso da prisão em segunda instância, do fim do foro privilegiado e do aumento da autonomia dos órgãos de controle. Vou ser um senador independente no Senado Federal. Tenho, sim, convergências com o governo, como na pauta econômica liberal, mas também tenho temas que são muito caros a mim. Vou trabalhar pelas pautas éticas, independentemente de quem for o presidente.
Entre esses projetos está incluída a reforma do STF defendida por bolsonaristas? Sou favorável a uma revisão da nossa Justiça, em especial do Supremo Tribunal Federal. Acho positiva a ideia de um mandato de doze anos para novos ministros, sem ampliação de cadeiras na Corte e sem recondução. Doze anos são um tempo suficiente para realizar um bom trabalho, gerando uma certa estabilidade na jurisprudência. Uma reforma da Justiça não pode ser tratada como tabu e tampouco como antagonizadora do Supremo. Não é uma guerra entre poderes.
A reforma do STF que o senhor defende tem como pano de fundo as decisões em relação à Lava-Jato? Se temos um sistema de Justiça Criminal que passa para as pessoas a imagem de que o crime compensa, tem algo que tem de ser alterado, mas isso tem de ser tratado do ponto de vista institucional, e não pessoal. As anulações das condenações do Lula foram decisões profundamente erradas do STF. Em vez de nos preocuparmos com reformas muitas vezes mirabolantes, temos de ver quem serão os ministros indicados.
O senhor pretende ser o autor da emenda constitucional propondo essas mudanças no STF? Isso tem de ser discutido com o próprio Supremo para não parecer que é uma posição de confronto. Não é para alterar as regras com o jogo em andamento. Esse tema da ampliação do número de ministros do Supremo não resolve, por exemplo, a interferência de um poder em relação a outro — o que pode ser resolvido com mandato, com a exigência de que decisões monocráticas sejam submetidas em um prazo razoável ao colegiado e com o Senado sabatinando de verdade os candidatos a ministro.
Como senador, pretende aceitar emendas do orçamento secreto? Não. Além da falta de transparência, o orçamento secreto retira a capacidade do governo federal de estruturar grandes projetos porque transfere ao Parlamento a decisão de alocação de recursos orçamentários muito amplos. Não é uma forma saudável de formação da maioria parlamentar e de composição da vontade política, mas, vale ressaltar, ele não tem comparação com o mensalão ou o petrolão. Estes eram mecanismos de corrupção.
“Sou favorável a uma revisão da nossa Justiça, em especial do STF. Acho positiva a ideia de um mandato de doze anos para novos ministros, sem ampliação de cadeiras e sem recondução”
O senhor concorda com a avaliação do presidente de que o ministro Alexandre de Moraes extrapola nos inquéritos que conduz no STF? Temos uma eleição bastante polarizada e minha percepção é a de que às vezes o Supremo, o TSE e os órgãos judiciais deveriam adotar uma postura de maior autorrestrição. Em questões complicadas, como fake news, as decisões deveriam ser sempre na linha de prestigiar a liberdade de expressão. Na dúvida, permita-se o debate, permita-se o diálogo. Mas também vale ressaltar que quem está forçando os juízes a se pronunciarem são os partidos e os candidatos.
O senhor manterá apoio ao presidente mesmo com os ataques dele às urnas e as ameaças de que talvez o resultado das eleições não seja aceito? Tenho divergências importantes com o presidente Bolsonaro, isso não mudou. Entre elas essa insistência em questionar as urnas eletrônicas. As urnas funcionam desde 1996 sem que haja uma demonstração de fraude, mas acho que deveríamos discutir para as próximas eleições melhorias no sistema de aferição do resultado para sepultar a questão de uma vez por todas. Por exemplo, com um voto impresso por amostragem. Democracia também é transparência.
O decano do STF Gilmar Mendes disse certa vez que o melhor legado do governo Bolsonaro havia sido “devolver Moro ao nada”. Não encaro isso do ponto de vista pessoal. Estou preocupado com o futuro e com a construção de instituições fortes para o Brasil, fortalecendo a democracia. Não trato essas questões com o fígado.
Sua aproximação de Bolsonaro abre caminho para que seja indicado para o Supremo caso ele seja reeleito? Não tem nada disso. O que quero é ser um senador independente, representando o Paraná e trabalhando pelo Brasil. Não tenho nenhum interesse no Supremo Tribunal Federal nem em compor o Executivo.
Nem em 2026 se viabilizar como candidato à Presidência? Minha preocupação é exercer um bom mandato como senador. Já é um projeto político suficientemente desafiador e satisfatório. Ninguém vai começar 2023 pensando em 2026 ou em 2030. Daqui a quatro anos a gente vê o que acontece no futuro.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812