Mónica Baltodano foi uma das três mulheres nomeadas comandantes da revolução sandinista, que, em 1979, derrubou a ditadura de Anastasio Somoza na Nicarágua. Ex-guerrilheira, ela ascendeu ao poder ao lado de Daniel Ortega, que agora — em sua segunda passagem pela Presidência, iniciada no longínquo ano de 2007 — é acusado pela antiga companheira de luta de comandar um regime ditatorial, transformar o país numa imensa prisão e perseguir adversários políticos, muitos dos quais sujeitos a torturas e estupros. Em razão desse quadro, Mónica é crítica da postura do presidente Lula, que conheceu quando ele ainda era sindicalista, e de boa parte da esquerda brasileira e latino-americana, que, por razões ideológicas, não repreendem de forma veemente Ortega nem exigem o exercício pleno da democracia na Nicarágua. Ela chega a elogiar a postura de Jair Bolsonaro enquanto faz ressalvas à postura “ambígua” do petista. A seguir os principais trechos da entrevista da ex-comandante, que, como outros opositores de Ortega, teve a nacionalidade cassada, os bens confiscados e se viu obrigada a morar em outro país (Costa Rica).
Há paralelo entre os regimes de Somoza e Ortega? Existem várias semelhanças entre os regimes de Somoza e de Ortega. Ambos controlam as armas e o Exército, com este último, o Exército, agindo quase como uma guarda pretoriana do presidente. Ambos também recorrem a eleições fraudulentas, nas quais os resultados são manipulados. Além disso, Ortega busca a continuidade no poder e parece estar construindo um regime em que o poder se tornará hereditário, passando para sua esposa e filhos, formando assim uma dinastia. Mas também há algumas diferenças importantes.
Por exemplo? Enquanto Somoza utilizava o discurso anticomunista para justificar suas ações, Ortega faz tudo em nome do anti-imperialismo, embora seja em grande parte mera retórica. Em certos aspectos, Ortega demonstra ser muito mais repressivo do que Somoza, especialmente em relação à perseguição contra a Igreja, algo que Somoza não fez. Além disso, Somoza não chegou a fechar todos os veículos de comunicação independentes, enquanto o regime de Ortega conseguiu eliminar completamente a imprensa independente.
Em sua avaliação, Daniel Ortega é pior para a Nicarágua do que foi Somoza? Em muitos aspectos, sim. Ele não chegou a praticar o genocídio nem a bombardear cidades, como fez Somoza, porque não há no momento uma luta armada, mas uma luta civil. Se tivesse uma luta armada, Ortega já teria feito isso. Na década de 70, queríamos uma Nicarágua livre. Sonhávamos com liberdade e democracia. Os sonhos continuam sendo os mesmos.
“Ao promover prisões e exílios de opositores, Ortega transformou o país em uma nação sem liberdade. Não há liberdade de organização, de manifestação, de imprensa, não há liberdade religiosa”
A senhora foi ministra do primeiro governo sandinista. Como foi a ruptura com ele? Eu fui ministra até perdemos as eleições em 1990, mas logo me distanciei e comecei a contestar as ações de Ortega. Em 1998, ele fez um pacto mafioso com o principal líder da direita, Arnoldo Alemán, que era o presidente da Nicarágua, dividindo as instituições entre eles. A Suprema Corte, por exemplo, foi dividida entre eles, com oito magistrados para Alemán, e oito para Ortega. Foi a confirmação de que Ortega já não era nenhum líder revolucionário, pois seu único propósito era o poder. Ele se transformou num monstro pior do que qualquer outro ditador já conhecido.
Por quê? Recentemente, ele retirou a nacionalidade de 317 nicaraguenses, uma situação que só foi vista no regime nazifascista da Alemanha, quando a nacionalidade dos judeus e comunistas foi revogada. Em 2018, quando houve uma manifestação popular contra uma lei de reforma da previdência, as prisões de opositores foram acompanhadas de torturas, de estupros de homens e mulheres. Práticas como arrancar as unhas das pessoas foram registradas. Relatos também mencionam estupros de meninos e meninas, nos quais foram introduzidos tubos metálicos de fuzis. Há, inclusive, um herói da luta contra Somoza que morreu na prisão e que era amigo de Daniel Ortega. Não deram nenhuma explicação sobre como ele havia morrido na prisão.
É por isso que a senhora considera a Nicarágua uma imensa prisão? Ao promover prisões e exílios de opositores, Ortega transformou o país em uma nação sem liberdade. Não há liberdade de organização, de manifestação, de imprensa, não há liberdade religiosa. Não se pode fazer procissão religiosa. Até os funcionários do governo estão impedidos de viajar, pois seus passaportes estão em posse de Ortega. Para viajar precisam de permissão, e a maior parte deles não tem. A Nicarágua é uma imensa prisão onde apenas os seguidores de Ortega podem se mobilizar ou fazer atividades. As ações de caridade realizadas por organizações religiosas foram proibidas. A Cruz Vermelha e todas as casas de idosos que eram administradas por religiosas foram fechadas.
Pesquisas também apontam a Nicarágua como um dos países mais corruptos da América Latina. A primeira grande corrupção ocorreu quando Daniel Ortega privatizou os empréstimos venezuelanos, que foi uma cooperação extremamente generosa concedida por Hugo Chávez e que permitiu a Ortega dispor de quase a mesma quantidade de recursos que todas as exportações da Nicarágua forneciam, sem passar pelo Orçamento da República. Mas ele utilizou esse dinheiro para enriquecer a sua família e enriquecer pessoas próximas a ele. Hoje em dia ele tem mais dificuldade porque não dispõe mais do empréstimo venezuelano e já não entram os mesmos recursos de antes, embora a corrupção tenha se multiplicado.
Qual avaliação a senhora faz da posição do presidente Lula em relação ao regime nicaraguense? O Brasil, devido ao seu tamanho e capacidade, e agora com um presidente de esquerda, pode desempenhar um papel fundamental, exercendo pressão sobre o regime da Nicarágua, com o objetivo de criar espaços para que possamos disputar o poder contra Ortega pelos meios políticos democráticos. Mas isso exigiria coerência entre as forças que apoiam o presidente Lula, para que elas possam trabalhar nessa direção. Até o momento, Lula não teve uma postura contundente de repúdio à ditadura de Ortega, como já fizeram os presidentes do Chile (Gabriel Boric) e da Colômbia (Gustavo Petro), por exemplo. Ele mantém uma posição ambígua. Não é o único, mas é o mais notório.
O que o Brasil poderia efetivamente fazer para mudar essa situação? Não achamos que o presidente Lula tenha uma varinha mágica. As esquerdas têm expressado diferentes posturas desde que ficou claro que na Nicarágua há um regime restritivo, que quer se perpetuar e se instalar de forma ditatorial. Há setores de esquerda que condenaram esses crimes e essas violações. Mas há setores, inclusive dentro do próprio PT, que não agem assim e fazem parte do esforço de repetir a narrativa mentirosa que justifica Ortega, fechando os olhos para o que está acontecendo. Há posições como a de Gabriel Boric, que não deixa de falar desse tema em distintos espaços, e há posições antigas, como as que dão respaldo a Venezuela e Cuba. Lula estará nessa segunda situação enquanto ele não romper claramente com o regime de Ortega. Nesse ponto, Jair Bolsonaro contribuiu mais.
Como assim? Em relação à Nicarágua, o governo Bolsonaro condenou a repressão de Ortega em todos os organismos internacionais, na Organização dos Estados Americanos (OEA). Na última reunião da OEA, o Brasil manteve essa postura e se posicionou finalmente a favor também de condenar a ditadura na Assembleia Geral, e conseguimos que Lula mantivesse a unidade e a condenação por consenso. Isso foi positivo para nós, mas precisamos de uma condenação mais consistente contra o regime de Daniel Ortega em outros espaços. Continuamos esperando por isso.
“Lula não teve uma postura contundente de repúdio à ditadura de Ortega, como já fizeram os presidentes do Chile e da Colômbia. Ele mantém uma posição ambígua. Não é o único, mas é o mais notório”
O sandinismo levou algo de positivo aos nicaraguenses? A saúde pública tem dado uma resposta à maioria empobrecida, mas há um setor amplo que tem recorrido à saúde privada. A situação econômica se agravou também como resultado da crise política. Ao contrário da revolução, que enfrentou sérios problemas de abastecimento e sofreu uma crise econômica brutal nos anos 80, a atual situação de abastecimento sob a liderança de Ortega tem apresentado melhorias significativas. Suas políticas macroeconômicas têm sido reconhecidas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial tem fornecido apoio financeiro. Assim, a economia nicaraguense tem se concentrado principalmente na macroeconomia, enquanto a microeconomia enfrenta desafios significativos. A maior parte da população, porém, continua abaixo da linha da pobreza. Protestar contra isso é crime. Uma ressalva: você perguntou sobre o sandinismo. Sandino foi um herói que defendia soberania, independência e uma proposta democrática abrangente. Ele acreditava que a democracia deveria progredir para evitar futuras intervenções externas. O que domina hoje a Nicarágua é o “orteguismo”, que representa um desvio significativo desses princípios.
Qual é a situação da senhora hoje? Fui presa por participar do Movimento de Renovação Sandinista e exigir a libertação de presos políticos. Estou numa relação de 94 opositores declarados pelo governo como apátridas, condenados sem julgamento, sem sentença. O objetivo de Ortega é a eliminação civil e material de todos nós. Apagaram nossos registros de nascimento, confiscaram nossos bens. Oficialmente, não existimos.
No passado, a luta armada foi o caminho que a senhora defendia para enfrentar a ditadura. Continua pensando assim? Persigo os mesmos sonhos de liberdade, de justiça social, de uma Nicarágua que vai superar a desigualdade extrema que vivemos, livre e democrática. A diferença significativa é que, quando ocorreu a primeira revolução, eu tinha 25 anos, mas agora estou prestes a completar 69. Além disso, hoje em dia a juventude, em especial, decidiu adotar uma abordagem pacífica na luta. Portanto, abraçamos com firmeza a importância de um movimento não violento. Não buscamos novos conflitos armados, mas soluções através do diálogo. Estima-se que ao longo da ditadura Somoza, cerca de 50 000 nicaraguenses perderam a vida, e há uma quantidade desconhecida de desaparecidos. Acreditamos que é possível encontrar rotas para superar a ditadura sem recorrer à violência e evitar perdas de vidas, assim como outras nações conseguiram.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861