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Ludhmila Hajjar: “Médico não é Deus”

Preferida de artistas e políticos, a cardiologista diz que é preciso garantir segurança aos pacientes e defende o uso de câmeras nos centros cirúrgicos

Apresentado por Atualizado em 5 ago 2022, 17h55 - Publicado em 5 ago 2022, 06h00

Aos 45 anos, a cardiologista Ludhmila Hajjar alcançou um ponto na carreira médica em que pouquíssimas mulheres conseguiram chegar. Professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, diretora no Instituto do Coração, o mais reconhecido serviço de cardiologia da América Latina, e coordenadora da especialidade no Hospital Vila Nova Star, ela ainda tem no currículo mais de 200 publicações científicas e, no ano passado, foi considerada pela USP uma das maiores pesquisadoras em Covid-19 da instituição. Fora do meio, contudo, ela tem se tornado conhecida por ser a médica preferida das estrelas — a cantora Anitta acaba de passar por um procedimento sob sua supervisão — e de gente graúda do poder. Nesse quesito, não há polarização. Há na agenda de consultas de Ludhmila da ex-presidente Dilma Rousseff, do PT, a Gilmar Mendes, ministro do STF e um dos mais ferrenhos críticos da ex-mandatária. Em seu elegante consultório, ao lado do Vila Nova Star, em São Paulo, ela falou a VEJA sobre como é trafegar entre os mundos da rede pública e privada de assistência, os benefícios de atender pessoas influentes e os desafios para garantir a segurança dos pacientes contra assédios e estupros.

É difícil ser médico de artistas e políticos tão relevantes, a exemplo da cantora Anitta? Ser médico de artista e de político é ser médico, independentemente da classe social, gênero, profissão ou do que a pessoa representa para a sociedade. Mas, muitas vezes, o contato me ajuda a fazer com que esses indivíduos, de voz influente, gerem oportunidades para que os outros sejam ouvidos. É minha chance para ser a voz do povo com eles e falar sobre o que pode ser melhorado. O complexo do Hospital das Clínicas, em São Paulo, é um minirretrato do Brasil. Temos 3 000 leitos hospitalares do SUS com todo tipo de complexidade, ao mesmo tempo que fazemos pesquisa e formamos pessoas. Vivo os dois mundos da saúde no país.

Esses dois mundos conversam? Sim. As pessoas perguntam o que podem fazer. Já tratei muitos pacientes particulares que hoje são doadores, e antes não eram.

Há diferença no atendimento mesmo quando ele é feito na rede pública de instituições de referência como a USP? Sim. Embora todos tenham direito à saúde, no serviço público não conseguimos fazer uma entrega de maneira única. Existe distinção nos procedimentos, no tempo de espera, na eficiência. Tentamos fazer o melhor, mas a verdade é que temos tratamento A no privado e B no público.

“O contato com artistas e políticos me ajuda a fazer com que eles gerem oportunidades para que outros sejam ouvidos. É minha chance de ser a voz do povo e falar o que pode ser feito”


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Qual sua avaliação sobre o combate à pandemia de Covid-19 no Brasil? Não fomos bem. Houve atraso em reconhecer a gravidade da doença logo no início, na compra de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde, de remédios e vacinas, além da falta de congruência e transparência de informações. Sem falar no charlatanismo, papel triste de um grupo de brasileiros que defendeu métodos de prevenção e de tratamentos sem comprovação científica. E quem sofreu foi a população, especialmente a mais vulnerável. Os dados mostram que o número maior de mortes foi registrado nos estados mais pobres e entre os negros, pardos e indígenas.

A senhora vê alguma mudança no enfrentamento da varíola dos macacos? Estamos cometendo os mesmos erros. Fala-se da proliferação dos casos há alguns meses, mas até agora não dispomos de vacinas, enquanto os Estados Unidos já imunizam seus cidadãos. Temos o Instituto Butantan, a Fundação Oswaldo Cruz e outras instituições que fariam os imunizantes se recebessem os insumos, mas faltam elementos para gestão de crise de saúde, como é o caso do surto da doença.

Qual era a expectativa em relação ao desempenho do Ministério da Saúde depois que o cardiologista Marcelo Queiroga assumiu a pasta, após a saída do general Eduardo Pazuello? Nós, médicos, sempre queremos um ministro da Saúde médico. Queiroga foi um excelente presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, mas ser o titular da pasta na condição atual é muito mais complexo. Exige o apoio do Executivo e dos líderes do Legislativo. Torcemos muito para que o ministério saísse da gestão feita por um militar, mas não vimos resultados da troca até agora.

Como ficou sua relação com o presidente Jair Bolsonaro depois que recusou o convite para assumir o ministério após a saída de Pazuello? Não tinha relação anterior com ele. Eu o conheci na noite em que ele foi esfaqueado (6 de setembro de 2018), em Juiz de Fora, porque fui atendê-lo. Quando Pazuello saiu, recebi seu convite para conversar. Mas não houve convergência e vi que não poderia fazer meu trabalho como gostaria.

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Na época, a senhora sofreu ataques dos bolsonaristas. Eles continuam? Não. Foi uma onda do mal que passou.

Aceitaria o convite para ser ministra da Saúde em outra gestão? Não tenho pretensão política. Minha vida é a medicina e a educação. Sonho em fazer a universidade crescer e participar dos debates da saúde. Estou sempre pronta para discutir esses temas.

Quais seriam as prioridades do futuro ministro? Revisar o financiamento da saúde é um deles. O déficit só aumenta e a complexidade da assistência também. Além disso, é preciso cuidar da gestão dos recursos e dar mais espaço às parcerias público-privadas.

De que tipo? No InCor, temos acordos de colaboração com faculdades e instituições particulares por meio dos quais treinamos os alunos e, como contrapartida, existe a possibilidade de levarmos nossos estudantes para conhecer tecnologias que só existem na rede privada. É um modelo que pode ser replicado para melhorar a assistência. Os benefícios são bilaterais. Desde que haja respeito institucional das partes e acordos sem corrupção, há ganhos para os profissionais de saúde e principalmente para os pacientes.

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A senhora tem defendido um olhar mais rigoroso também para a rede suplementar e particular. Por quê? É preciso que sejam feitas auditorias nesses estabelecimentos. Existem instituições de grande excelência, sem dúvida, mas há aquelas que oferecem tratamentos de qualidade ruim. Não importa se é SUS, particular ou suplementar. Muda apenas a fonte pagadora, mas o cliente é o paciente.

Não ter informações sobre o sistema de saúde como um todo é um problema histórico no Brasil. Como superá-lo? Os dados são dispersos. É preciso povoar o ministério com técnicos capacitados em todas as áreas, incluindo gente que entenda de inteligência artificial para que tenhamos não somente o levantamento de informações, mas sua interpretação correta. No dia em que recebi o convite para assumir o Ministério da Saúde, só veio na minha cabeça uma coisa: apenas aceitaria se pudesse levar também as melhores pessoas de áreas como epidemiologia e estatística.

A senhora foi uma das primeiras pessoas a assinar a Carta aos Brasileiros, documento em favor da democracia e do estado democrático de direito. Isso pode prejudicar sua relação com pacientes que discordam do movimento? Não enxergo assim. Estamos vivendo uma crise moral e social com impacto direto na saúde, educação e cultura. Temos de entender o poder da sociedade civil para mudar isso. Quantas ditaduras caíram por causa dessa força? A carta não tem nada a ver com discurso eleitoral. Ela fala sobre a manutenção da democracia. Deverei estar presente no dia 11 de agosto no ato de sua leitura. É a oportunidade de gritarmos que estamos lá para defender a democracia, a lisura do processo eleitoral e o estado de direito.

Recentemente, o Brasil ficou chocado com o episódio do anestesista Giovanni Bezerra, que estuprou uma paciente dentro do centro cirúrgico. O que explica casos assim? É preciso melhorar a proteção do paciente. Em instituições sérias e auditadas, um dos focos é garantir sua segurança. No centro cirúrgico, o médico nunca pode ficar sozinho com o paciente, por exemplo. No caso do anestesista, a vítima foi uma parturiente. Mas ela tinha direito a um acompanhante, como determina a lei, pouco conhecida. E mesmo que a gestante ou o acompanhante peçam para que alguém fique junto antes, durante e depois do nascimento da criança, há lugares que lhes negam esse direito. Fica valendo a superioridade do médico, dizendo que ali não pode. O médico não é Deus. Estamos ali para trabalhar e cumprir o que determina a legislação.

“Tenho certeza de que meu caminho foi mais difícil por ser mulher. Sofri agressões verbais. Colegas me diziam: ‘Mas você é mulher e vai se candidatar a este cargo? A posição sempre foi de homens’ ”

O que é possível fazer para melhorar a segurança do paciente? Defendo a instalação de câmeras nos centros cirúrgicos. A Coreia do Sul fez isso e está dando certo. Por aqui, o tópico é controverso. Existem argumentações de que isso exporia o paciente. Porém, ele pode saber que está sendo filmado e, assim como o profissional que o assiste, assinar um termo autorizando a gravação. Em caso de suspeita ou denúncia, está tudo registrado. Além disso, só saber que está sendo filmado já funciona como um freio.

A violência contra a mulher tem hoje mais atenção por parte dos conselhos regionais de medicina? Sim. Eles estão dando mais importância ao tema. Quando houve a divulgação do caso do anestesista, discuti com conselheiros da regional de São Paulo a questão das câmeras.

Então os conselhos regionais estão menos corporativistas? Eles têm de mudar. Há uma mobilização dentro dos CRMs para punir os responsáveis e implementar políticas de prevenção de situações do gênero.

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Já sofreu algum tipo de assédio? Não. E se tivesse passado por isso, teria denunciado.

E discriminação por ser mulher, considerando que a medicina, e a cardiologia, especialmente, eram redutos predominantemente masculinos? Tenho certeza de que meu caminho foi mais difícil por ser mulher. Sofri agressões verbais ao longo da minha carreira.

De que tipo? Colegas homens que me diziam: “Mas você é mulher e vai se candidatar a este cargo? A posição sempre foi de homens e você terá de ser muito forte para alcançá-la”. Frases assim eram pronunciadas como algo normal. Mas elas denunciam diferenças que alguns ainda fazem em relação às mulheres. No meu caso, elas me tornaram mais forte.

Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801

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