Governo não tem um ‘plano de metas para o país’, diz Michel Temer
Conselheiro informal de Jair Bolsonaro, o ex-presidente faz críticas (e elogios) à atual gestão e conta o que sentiu quando foi preso pela Lava-Jato
Há dois anos longe do poder, o ex-presidente da República Michel Temer voltou a sentir o sabor das grandes decisões. Nesta semana, o conselheiro esporádico de Jair Bolsonaro entrou em campo a pedido do governador de São Paulo, João Doria, para solicitar ao embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, agilidade no envio de insumos indispensáveis à produção da vacina contra a Covid-19 no Brasil — ouviu que chegarão em breve. Depois, participou de um evento virtual em favor da imunização, com os também ex-inquilinos do Palácio do Planalto Fernando Henrique Cardoso e José Sarney. Em entrevista concedida no seu escritório em São Paulo, Temer criticou o governo atual por, segundo ele, não ter um plano para o Brasil, mas deixou claro que discorda daqueles que pedem o afastamento do presidente. Apesar de ter chegado à Presidência da República em razão da cassação de Dilma Rousseff, Temer argumenta que esse tipo de processo é traumático para o país e lembra que ele próprio só não caiu porque não havia povo nas ruas. Sobre o futuro, reconhece que não há mais espaço para ele: “Eu não faço falta”.
O senhor participou nesta semana de um evento em favor da vacina com João Doria e o ex-presidente FHC. Vai tomar o imunizante ou tem alguma resistência à CoronaVac? Eu espero que chegue logo a minha vez. Pode ser do Paquistão, eu tomo.
Como avalia a atuação do presidente Jair Bolsonaro e de seu governo no combate à pandemia? Acho que agora ele está indo bem. No início, quando mencionou que a doença era um mal relativo, mínimo, não foi bem. Temos de adotar o que a ciência estabelece.
De uma forma geral, de que tamanho o Brasil sairá da pandemia da Covid-19? No momento, o importante é preservar vidas. A economia tem atropelos, mas isso é recuperável. E é preciso fazer uma revisão nas posições atuais sobre meio ambiente, para recuperar a imagem do Brasil no exterior. Na hora em que houver isso, os investidores voltarão. E outra coisa importante: sabe por que eu fui bem no meu governo? Eu cheguei com um programa que havíamos elaborado no PMDB, chamado Ponte para o Futuro. Essa administração precisa de uma espécie de nova ponte para o futuro, um plano de metas para o país. Isso não tem. Qual é o plano do governo?
O atual governo não tem um projeto de país? Ele pode ter um projeto interno, ali no seu grupo, mas a simbologia forte é expressar isso em regras escritas. Por exemplo, a manutenção do teto de gastos públicos é uma coisa importante para a credibilidade do país, interna e externamente. O que você pode fazer para ampliar o valor pago aos vulneráveis sem derrubar o teto? Em situação de calamidade pública ou emergência, é possível usar os créditos extraordinários, sem mexer no teto, isso está previsto na Emenda Constitucional do Teto de Gastos.
Na política externa, o senhor aprova as posições adotadas pelo atual governo? Nós não temos a menor condição de ser unilaterais, bilaterais ou isolacionistas. Nosso maior parceiro comercial é a China. E o segundo? Os Estados Unidos. Então, o governo tem de tomar muito cuidado com isso. Mas o presidente Jair Bolsonaro tem começado a apoiar essa multilateralidade nos últimos tempos.
“Sabe por que não foram à frente as denúncias contra mim? Porque não tinha povo na rua. Se houvesse, muito provavelmente teria sido aprovado um processo de impeachment contra mim”
O senhor é a favor da abertura de um processo de impeachment de Jair Bolsonaro, como tem sido pedido pela oposição? Todo impeachment é traumático. São meses e meses de um transtorno institucional extraordinário. Se puder esperar as eleições, é melhor para a estabilidade institucional. Não vi crime de responsabilidade do presidente, mas teria de analisar os pedidos caso a caso. Por exemplo: dizem que Bolsonaro trabalhou contra a vacina, mas, se você pegar as manifestações dele na segunda-feira, ele até elogia o Estado chinês. Como é que vai levar adiante o processo se tem uma declaração dessa natureza?
No caso do impeachment que levou o senhor ao cargo, foi o melhor para o país? Eu peguei o governo com um PIB de menos 3,6%. Havia milhões de pessoas nas ruas protestando e uma ambiência no Congresso Nacional muito negativa para o então governo.
Havia crime por parte de Dilma Rousseff? Ela cometeu crime no sentido institucional, com a questão das pedaladas, que levou à responsabilização política dela. Não cometeu crime no sentido penal. Às vezes se acusa a ex-presidente de uma eventual desonestidade. Convivi com ela, claro que muito decorativamente, mas devo dizer que é de uma honestidade ímpar.
No livro que lançará em breve, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha acusa o senhor de ter conspirado contra Dilma. Isso aconteceu? O Eduardo, coitado, não foi o autor do impedimento, e nem eu. Ele teve de levar adiante alguns pedidos de impeachment, que, ao ver dele, eram inafastáveis. Quem derrubou a ex-presidente foram os milhões de pessoas que foram para a rua.
Baleia Rossi (MDB-SP), aliado próximo do senhor, está disputando a presidência da Câmara. É difícil crer que, se ele vencer, o senhor não passará a ter ainda mais influência nos rumos do país… O Baleia realmente é muito ligado a mim. Mas eu não estou fazendo movimento algum. O Arthur Lira (PP-AL, adversário de Baleia) nunca votou contra o meu governo. Tenho um certo constrangimento em dizer que farei campanha para A ou B.
Assim como ocorreu com Bolsonaro, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o principal cabo eleitoral de Baleia Rossi, rivalizou em diversas ocasiões com o senhor quando o senhor era presidente. Ele é confiável? No meu governo, ele foi confiável mesmo nas denúncias contra mim, que poderiam gerar um impeachment. Sabe por que não foram à frente essas denúncias? Porque não tinha povo na rua. Se houvesse, muito provavelmente teria sido aprovado um processo contra mim.
Qual é a chance de o senhor voltar a disputar alguma eleição em 2022? Nenhuma. Só se vierem aqui e disserem: “Você vai ser entronizado presidente da República (risos)”. Mas isso é impossível e não é saudável.
Figuras históricas do MDB como o senhor, o ex-presidente José Sarney e o ex-senador Romero Jucá, que hoje estão fora da política, fazem falta ao Brasil? Ninguém é indispensável, todos são substituíveis. Eu não creio que façam falta. Com toda franqueza, nem eu faço falta.
Se o senhor pudesse ter de volta uma coisa que perdeu ao sair da Presidência, o que seria? Eu tinha muito agrado em poder realizar coisas: o concreto, o palpável, a caneta, que você tem quando é presidente. Sinto um pouco de falta, mas não me aflige.
Cite uma coisa que gostaria de ter feito no cargo e não conseguiu e outra que fez, mas se arrepende? Gostaria de ter votado a reforma da Previdência, mas a dupla JJ impediu (Rodrigo Janot, então procurador da República, e Joesley Batista, um dos donos da JBS). O que eu gostaria de não ter feito no governo: acho que ter sido tão informal, recebendo as pessoas. Isso me causou prejuízos, como o desse rapaz (Joesley) que foi me gravar lá.
A reforma trabalhista não alterou o patamar do desemprego do país. O senhor admite que ela entregou menos do que se supunha? É possível. Eu esclarecia à época que não deveríamos esperar que o céu ficaria azul no dia seguinte, acabaria a insegurança e haveria emprego para todos. Não é assim, essas coisas são paulatinas. A reforma produziu um efeito importante: paralisou a alta do desemprego, caso contrário, não sei onde estaríamos.
O senhor está sendo contratado para ajudar a empresa chinesa Huawei a não ser eliminada do processo de implantação do 5G no Brasil. Já tratou desse assunto com o presidente? Eu me senti um pouco agredido quando um jornalista disse que fui contratado para fazer lobby para a Huawei. Fui contratado para dar um parecer jurídico sobre a possibilidade ou não de ela participar de licitações para o fornecimento de equipamentos. Estou sendo contratado, nem se formalizou ainda. Houve conversas. Em uma ocasião, confesso a você, falando com o presidente Jair Bolsonaro, eu disse a ele: “Se a Huawei for inviabilizada tecnicamente, tudo bem. O que não pode é dar sentido político a isso. Ela já implantou aqui o 3G, o 4G, o 4,5G”. Foi a única palavra. Ele não deu resposta.
O senhor foi preso pela Lava-Jato, e dizem que uma estada na cadeia, por menor que seja, deixa marcas. Quais ficaram no senhor? Eu não fui preso, eu fui sequestrado, um sequestro logo derrubado pelos tribunais superiores. É extremamente desagradável. Para a família, é um horror. Imagine os filhos, os meus netos (embarga a voz) vendo pela televisão. Isso deixou marcas naquele momento. Mas eu sou um homem que posso andar pelas ruas. Vou aos restaurantes e sou cumprimentado pelas pessoas.
“É extremamente desagradável (‘ser preso’). Para a família, um horror. Imagine os filhos, os meus netos, vendo pela TV. Isso deixou marcas. Mas eu sou um homem que pode andar pelas ruas”
Nunca o chamaram de golpista? Nada. Eu terminei o governo com o “fica, Temer” (após a vitória de Bolsonaro). Muitos ainda dizem “volta, Temer”. Vale a pena lutar. Se eu me acomodasse, silenciasse, iriam passar por cima do meu cadáver, mas não passarão.
Bolsonaro chegou à Presidência por ser um político capaz ou a vitória dele foi um mero reflexo da rejeição a um determinado perfil de político? No Brasil, de tempos em tempos, o povo quer mudar tudo. Bolsonaro soube aproveitar a insatisfação popular crescente, assim como o Lula fez nas eleições de 2002. Há uma certa radicalização, aliás, que interessa aos dois.
Como o senhor avalia essa classificação de nova e velha política? Essa é uma distinção para efeitos eleitorais, não são reais. O governo Sarney, que permitiu a redemocratização do país, é velha política? O Plano Real é velha política? A Lei de Responsabilidade Fiscal, que eu implementei, os programas sociais do Lula são velha política? O que tem são a política criticável e a não criticável. Isso, sim.
Como acha que entrará para a história? Como um reformista, que, sem embargo de ter tido dura oposição política e institucional, conseguiu levar adiante um programa de pacificação nacional e de reformas.
Se Michelzinho, o seu filho mais novo, quiser entrar para a política, o senhor vai incentivá-lo? Ele vai fazer o que quiser. Se pedir o meu conselho, eu vou dizer: “Não entre, não, porque você pode fazer muita coisa positiva que não será reconhecida”.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723