Eduardo Cunha: “Eu vou voltar”
Na primeira entrevista depois de revogada sua prisão, o ex-todo-poderoso da Câmara dispara contra nomes da República e diz que mantém apetite político
De terno bem cortado, abotoaduras Hermès e cabelos penteados para trás, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, 62 anos, lembra muito mais os tempos de mandachuva em Brasília do que de ex-detento da Lava-Jato. Ele cumpriu quatro anos e meio de prisão — um deles em casa — dos quinze a que fora condenado. Recém-revogada a medida que o impedia de sair às ruas, Cunha, nesta primeira entrevista cara a cara, gira sua metralhadora com força renovada contra o ex-juiz Sergio Moro, o ex-presidente Michel Temer e outros. Peça-chave do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, sente certa afinidade com ela na maneira como ambos caíram em desgraça. “No fim, morremos abraçados”, diz. Durante a conversa, acompanhada por sua filha e herdeira política Danielle, Cunha conta que escreve um segundo livro sobre os bastidores da República e, sim, planeja retornar à arena política.
A esta altura, esperava ter sua prisão revogada? Era uma injustiça. Fiquei esse tempo todo cumprindo medida preventiva mesmo estando num país onde a presunção da inocência é parte da Constituição e só se pode executar a pena depois de a ação transitar em julgado. Me tornei um troféu para o Moro.
De onde vem essa convicção? Para mim, está claro que fui usado como contraponto para não parecer que ele perseguia unicamente o PT.
O senhor está dizendo que houve abuso de poder na Lava-Jato? Sem dúvida. Na prisão de Curitiba, presenciei as alegações finais de um caso serem entregues tarde da noite e, às 6 da manhã, já haver sentença. A decisão estava pronta e o processo era mero detalhe. No meu caso, a sentença saiu em 36 horas. Há, sim, réus confessos e comprovados na Lava-Jato, mas uma coisa é certa: muitos mentiram sobre atos de terceiros para atender à operação. E eu era a encomenda número 1.
Acusaram o senhor de manter contas no exterior e mentir na CPI da Petrobras, o que culminou na sua cassação. Procede? Não tenho conta nenhuma no exterior. Sou mero usufrutuário de um trust (fundo que administra bens) na Suíça, que eu só podia movimentar conforme as instruções do contrato. Ele era constituído com recursos, cerca de 2,3 milhões de dólares, que possuía antes de entrar na política (agora repatriados). Já havia trabalhado com comércio exterior e mercado financeiro.
Nunca mesmo se beneficiou de dinheiro público de forma ilícita? Essa pergunta é ofensiva, mas a respeito pela situação em que me encontro. Em outra circunstância, nem responderia. Mas não, não me beneficiei de dinheiro público. Talvez tenha cometido o mesmo erro que outros brasileiros, que, com a inflação alta, mantiveram dinheiro no exterior sem declarar à Receita Federal.
Pode dizer com todas as letras que jamais roubou um centavo? Nunca roubei. Para ser sincero, não tenho um centavo sequer. Todo o meu dinheiro foi bloqueado. Hoje sou sustentado pela família. Agora, com a liberdade, preciso arranjar um jeito de sobreviver. Penso em um canal no YouTube sobre política. Também tenho espaços de lojas e talvez vá empreender. Estou ainda às voltas com meu segundo livro, que já tem até título: Querida, Eu Voltei.
Descobriram gastos de sua família com cartão de crédito que superam 500 000 dólares, entre 2013 e 2015. De onde vieram esses recursos, que bancaram, entre outras coisas, aulas de tênis na Flórida e um guarda-roupa de grife? Ao contrário do que se divulgou, essas despesas começam em 2007. Os gastos com a academia de tênis, na realidade, eram do high school (ensino médio) do meu filho. Tem uma escola naquela unidade. Quanto às roupas de grife, qual o problema? Faz parte do padrão de vida de uma pessoa de classe média alta. É injusto colocarem tudo na conta da minha mulher (Cláudia Cruz). Ela comprava para a família inteira. O dinheiro vinha do trust na Suíça.
“Nunca roubei. Para ser sincero, não tenho um centavo sequer. Todo o meu dinheiro foi bloqueado. Sou sustentado pela família.”
A gravação em que Temer diz ao empresário Joesley Batista “Tem que manter isso aí, viu” dá a entender que o senhor era favorecido. Recebeu dinheiro da JBS? Esse foi o dia mais difícil em todo esse processo. A história de que eu recebia para não delatar não procede. Ninguém cita dinheiro, foi só uma suposição. O que entendo dessa frase é: “Estou de bem com o Eduardo, tem que manter isso aí” — queriam ficar bem comigo. O silêncio que estava sendo comprado não era o meu, mas sim o do doleiro Lúcio Funaro.
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Qual foi o pior momento na prisão? Quando vazou a delação do Joesley. Como a gente era obrigado a andar pela cadeia, onde havia presos comuns e membros do PCC, sofri ameaças sérias. Esse tipo de informação faz com que bandidos achem que você tem dinheiro e aí tentam extorqui-lo. Existia o medo de que um grupo invadisse a ala da Lava-Jato para fazer de refém um de nós.
Circulou que o senhor se portou como um detento encrenqueiro. Nada disso. Sou do tipo que se adapta às circunstâncias. Não me recusei a nada: varri chão e entreguei refeições.
O que ficou desse período? Sou temente a Deus e acredito que ele tem um propósito. Até hoje, a Danielle (sua primogênita) não pode ter cartão de crédito; outra filha foi perseguida na faculdade; e todos tiveram contas bancárias encerradas e dificuldade de conseguir emprego em razão do sobrenome. Na prisão, quase morri de hemorragia decorrente de uma hemorroida e descobri um pólipo no intestino.
No presídio, o senhor esteve próximo de nomes de peso do PT. Fizeram amizade? Amigo, amigo, não. Mas dividi por um período cela com José Dirceu (ex-ministro-chefe da Casa Civil). Também convivi com o João Vaccari Neto (ex-tesoureiro do PT) e o André Vargas (ex-deputado federal). Falamos sobre tudo, inclusive política. Mesmo sendo petistas, não reclamaram de nada comigo. Garanto que lá não tinha nenhum fã da Dilma. Todos mostraram seus processos e cheguei a palpitar, mas não posso comentar. Existe um código de honra para não expor quem está ali.
Alguém quebrou essa regra? Havia queixa frequente entre os presos de Curitiba sobre o Fernando Baiano (lobista). Diziam que ele montou sua delação com base em conversas na cadeia.
O senhor tentou uma delação premiada. Alguém lhe pediu para ser poupado? Não, mas perderiam tempo. Se fosse realmente fazer uma delação, não teria recado que resolvesse. A tentativa de negociação desse acordo partiu de meus advogados para mostrar que era falsa a versão de que eu estaria recebendo dinheiro da JBS para não delatar. No fundo, não queria fazer delação. Como já disse, não cometi crime.
No suposto esquema de corrupção na Petrobras, um delator afirmou que o senhor recebeu 5 milhões de dólares de propina. Outro disse que era sua a última palavra nas indicações políticas na área internacional da empresa. Confirma? Essas acusações surgiram exclusivamente na palavra de delatores, na base do “ouvi dizer”.
O senhor foi condenado pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. É tudo uma orquestração do sistema? O processo relativo à CPI da Petrobras ainda não transitou em julgado. Fui condenado em primeira instância por um juiz incompetente (Moro) e alvo, sim, de uma orquestração contra mim feita pelo Rodrigo Janot (ex-procurador-geral da República) e pelo José Eduardo Cardozo (ex-ministro da Justiça). Tudo por causa dos atritos iniciados no processo de impeachment.
Comenta-se que o impeachment teria sido uma resposta à falta de apoio do governo a sua reeleição na Câmara. O que tem de verdade aí? A tese da vingança não é compatível com a cronologia dos fatos. A decisão de instaurar o processo se deu antes da representação contra mim no Conselho de Ética. É óbvio que a ofensiva do governo para tentar me afastar contribuiu para a minha decisão. O episódio estaria superado não fosse a disposição do governo em me destruir, usando a Lava-Jato como escudo. No final, morremos abraçados, eu e o PT.
O senhor já disse que a queda de Dilma não foi golpe, mas em seu livro Tchau, Querida — O Diário do Impeachment, escreveu: “Quem com golpe fere, com golpe será ferido”, numa referência irônica ao PT, que defendeu o afastamento de outros presidentes. Afinal, foi golpe? Não. Se for ver por aí, o PT foi muito mais golpista. O impeachment do Collor acabou sendo aceito com base em um Fiat Elba. Aquilo não era crime de responsabilidade.
A queda da ex-presidente Dilma teve teor mais técnico ou político? Não existe impeachment que não contenha um componente político. O processo passa pela Câmara e pelo Senado. Agora, a Dilma, além das pedaladas fiscais, desrespeitou a lei orçamentária.
O senhor afirma que a deposição de Dilma não aconteceria se Temer não tivesse agido nos bastidores. Como é a relação entre vocês hoje? Não nos falamos desde 2016. Poderia até conversar com ele porque sou educado, mas não há motivos. Ao contrário do que o Michel fala, de que só soube do impeachment na véspera e que caiu do céu em seu colo, não é verdade. Ele foi parte ativa da estratégia.
Sente-se traído pelo Temer? Sim. Renunciei à presidência da Câmara após uma articulação iniciada por ele e Michel não cumpriu o combinado, que era evitar ou diminuir a carga do processo de cassação contra mim. Mas não foi surpresa. Ele não é dado a entrar em bola dividida, a não ser quando é por interesse próprio.
“Ao contrário do que Temer fala, de que só soube do impeachment na véspera e que caiu do céu no colo dele, não é verdade. Ele foi parte ativa.”
Houve outras traições? Sim. Uma delas veio do Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara), que foi praticamente o responsável pela minha cassação.
O senhor revela no livro que alguns deputados tentaram extorqui-lo para que votassem a seu favor no Conselho de Ética. Como aconteceu? Reforço que fiz política honestamente. A maioria que votou a meu favor o fez sem interesse algum. Claro que teve quem tentasse se locupletar. No livro, cito três casos (os ex-deputados Wladimir Costa, José Carlos Araújo e Fausto Pinato).
Em suas memórias, o senhor dá a entender que apoia o presidente Jair Bolsonaro. Apoia mesmo? Como eu vou ficar contra quem foi colocado para ser o anti-PT? A discussão não é apoiar ou não. Não quero é o PT de volta.
Como vê o retorno do ex-presidente Lula ao tabuleiro político? O Lula precisa ser derrotado no voto para que a polarização seja superada e esse esqueleto, enterrado. Tirá-lo do jogo é um erro, porque ele fica mais forte. Aliás, esses nomes de centro que apareceram por aí — Mandetta, Doria, Huck — são a turma dos 3%, com chance zero de ganhar.
Tem medo de voltar para trás das grades? Ainda vou enfrentar nove ações penais. Eram dez, mas fui absolvido na semana passada em uma delas, na qual era acusado de organização criminosa. Só volto à prisão se for vítima de nova covardia.
Cogita um retorno à política? A candidata nas próximas eleições a deputada federal é a minha filha Danielle Cunha. Mas me aguardem: com certeza, eu vou voltar.
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738