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Brittany Kaiser: “Campanha de Bolsonaro usou internet para desinformação”

Pivô do escândalo da Cambridge Analytica, cientista revela detalhes da operação e diz que no Brasil foi usada a mesma estratégia para persuadir eleitores

Por Filipe Vilicic Atualizado em 4 jun 2024, 15h07 - Publicado em 17 jan 2020, 06h00
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  • Depois de trabalhar em campanhas de democratas nos Estados Unidos, inclusive do ex-presidente Barack Obama, a texana Brittany Kaiser, especialista em relações internacionais, foi contratada como diretora de negócios de uma então obscura consultoria política inglesa, a Cambridge Analytica. Após o pleito americano de 2016, revelou-se que a empresa coletou, de forma antiética — e possivelmente ilegal —, dados de usuários do Facebook para influir no resultado de eleições em diversos países. Essa estratégia foi determinante na vitória de Trump. Brittany, que depôs em julgamentos do caso e em 2019 protagonizou o documentário Privacidade Hackea­da, da Netflix, detalha os bastidores do escândalo no livro Manipulados, lançado nesta semana pela HarperCollins. Na entrevista a seguir, ela conta como se envolveu nessa história, admite arrependimento e diz que Bolsonaro usou táticas similares em 2018.

    Em que momento a senhora percebeu que estava envolvida com operações antiéticas em seu trabalho na Cambridge Analytica (CA)? De início, surgiam sinais, mas nada que fosse definitivo. Assim como o Facebook, a Cambridge Analytica era uma startup de tecnologia que acreditava poder quebrar todo conceito antigo para continuar a crescer de maneira exponencial. A noção era que tínhamos de seguir adiante, não importava como, por qual caminho, pois havia a sensação de que construíamos algo importantíssimo. O problema era o “não importava como”.

    Que situações soaram incorretas? Sempre que eu ligava para os nossos advogados com dúvidas acerca de procedimentos de compliance, se alguma operação seria ilegal ou não, era reprimida. Para eles, eu estaria apenas criando ruído. Havia a visão de que os cientistas de dados saberiam, intuitivamente, o que pode, o que não pode, e ponto. Ficou evidente que não era bem assim. Para mim, os problemas tornaram-se claríssimos um mês antes da vitória de Trump na eleição presidencial de 2016. Um então colega meu na Cambridge, que estava à frente do trabalho do candidato republicano, coordenou uma apresentação do que havia sido feito. Foram dois dias de detalhamentos. Explicou-se quais dados privados a Cambridge comprara de empresas variadas. Elucidou-se ainda a criação de estratégias específicas de convencimento, de acordo com o grupo de usuários das redes sociais que se pretendia impactar. À primeira vista, tudo soava banal. Mas, olhados de forma séria, logo esses procedimentos se revelaram problemas gravíssimos. A Cambridge não só trabalhava para convencer eleitores a optar por Trump. Também se esforçava para persuadir pessoas a não ir votar em Hillary Clinton, a ficar em casa no dia da eleição. Foram utilizadas muitas táticas chocantes. Antiéticas, certamente. E talvez se comprove serem ilegais.

    “É óbvio que a campanha de Jair Bolsonaro à Presidência usou a internet para espalhar desinformação, viralizar notícias mentirosas, persuadir eleitores”

    O ex-CEO da empresa, o inglês Alexander Nix, diz, no documentário Privacidade Hackeada, da Netflix, que não houve ilegalidade. Por que a senhora afirma o contrário? Há três pontos a ser considerados. Primeiro, os dados foram obtidos com falsas pretensões. Dizia-se que a intenção da coleta, tanto por meio de empresas terceirizadas quanto por games e questionários do tipo “Qual princesa da Disney é a sua preferida?”, era de cunho acadêmico. Mentira. A segunda consideração, contudo, é que judicialmente seria possível contornar isso, dizendo que todos os usuários aceitaram expor suas informações ao concordar com os termos de serviço do Facebook. Entretanto, isso é malandragem. Agora, por fim, é inegável que foram utilizadas táticas como a disseminação de notícias falsas, de mensagens racistas e sexistas e a opressão do voto — incentivando eleitores a não ir às urnas —, que são ilegais em vários países, como nos Estados Unidos. Infelizmente, as legislações possuem diversas brechas que permitem múltiplas interpretações sobre o que é legal ou não na internet. Esse, de fato, é o maior problema. É o que deve ser debatido com urgência.

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    Mark Zuckerberg, do Facebook, já assumiu que governos como o indiano, o russo, o chinês, ainda usam empresas como a Cambridge Analytica para interferir em eleições. Por que isso continuou a ocorrer depois do escândalo envolvendo Trump? Na verdade, a prática se disseminou. A companhia para a qual trabalhei esteve nos holofotes. Mas diversas outras fazem exatamente a mesma coisa. Um estudo recente da Universidade de Oxford constatou isso, identificando diversas agências do mesmo tipo, espalhadas pelo mundo, que realizam propaganda política antiética. Nos últimos três anos, esses profissionais ainda aprimoraram todas essas táticas, seguindo o avanço das tecnologias relacionadas à criação de bots nas redes sociais, à inteligência artificial, à produção e divulgação de fake news etc.

    O modus operandi chegou a ser adotado em eleições no Brasil? Pela minha experiência e por fatores que não vou detalhar (Brittany é whistleblower em uma investigação do governo americano), é óbvio que o presidente Jair Bolsonaro se apoiou nessa estratégia para se eleger. A Cambridge Analytica, depois de todos os escândalos, teve dificuldade para operar em solo brasileiro. Todavia, muitas empresas similares fizeram isso em favor de Bolsonaro. A campanha dele usou a internet para espalhar desinformação, viralizar notícias mentirosas, persuadir eleitores. Diferentemente de Trump, ele recorreu mais ao WhatsApp, e não ao Facebook. De resto, foi muito parecido.

    Afinal, qual é o grande perigo do mau uso das redes na política? A ascensão de novos tipos de populista que põem em risco a democracia, em movimento similar ao que antecedeu a II Guerra Mundial. No passado, os radicais de direita e de esquerda abusaram de tecnologias então novas, entre elas o rádio, a TV e o cinema, como meios de propaganda política, como armas que enfraquecem os valores da sociedade. O que os populistas, como os que estão hoje na internet, querem ao agir dessa forma? Debilitar os direitos humanos, as noções de igualdade e justiça, o acesso universal a serviços básicos. Aliás, com tudo isso, não se trata somente de agressores da democracia. Eles atacam a civilização.

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    Em seu livro, a senhora destaca que o primeiro político a saber usar as redes sociais como ferramenta de campanha foi Barack Obama. Há diferença entre o que ele fez e o que fizeram Trump e Bolsonaro? Há distinções essenciais. Trabalhei nas campanhas presidenciais de Obama. Ele impunha um rigoroso guia de limites éticos. Não aceitava doações estranhas de multimilionários, sem respeitar limites, no que se chama nos Estados Unidos de Super PACs. Assim como, no caso da coleta de dados, impedia o uso de táticas persuasivas que fossem incorretas, não realizava campanhas negativas contra rivais nem espalhava desinformação, muito menos propagandas racistas, sexistas ou que tentavam convencer eleitores a não ir às urnas. Utilizar dados digitais não é, em princípio, errado. O problema é fazer isso de forma antiética. Obama tinha em mãos as mesmas ferramentas, mas não aceitava abusar delas, como fez Trump.

    “Usam tecnologias como armas que enfraquecem os valores da sociedade. O que querem com isso? Debilitar os direitos humanos, as noções de igualdade e justiça”

    Como a senhora, que trabalhou em campanhas democratas, até na de Obama, acabou por se envolver com os republicanos, em especial Trump? Quando comecei na Cambridge, estava completando o doutorado sobre diplomacia preventiva. A proposta era pesquisar como usar algoritmos para antever crises, como guerras, e adotar estratégias de prevenção. De início, já na Cambridge, uma das propostas era coletar dados para identificar quem poderia ser recrutado pelo Estado Islâmico, o Isis, e valer-se da propaganda nas redes para mudar a ideia dessas pessoas. Quando a estratégia é utilizada da maneira correta, pode solucionar grandes problemas do mundo. Reafirmo: em casos como esse, não há problema.

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    Só que, depois de descobrir o lado obscuro da CA, a senhora continuou na empresa. Por quê? Na época, meu pai enfrentava uma doença, e eu não podia me dar ao luxo de largar o emprego. Com o tempo, contudo, abandonei o que considerava antiético e passei a atender apenas políticos ideologicamente alinhados comigo. Hoje em dia, uso toda essa experiência que tive para me dedicar principalmente ao ativismo, a causas nas quais realmente acredito. Auxilio ONGs. Promovo a proteção dos dados privados on-line perante a União Europeia e o governo americano. Criei uma fundação cuja intenção é oferecer treinamentos a crianças, capacitando-as a se proteger na internet, de diversas formas. Principalmente pela minha aparição no documentário da Netflix, todo dia alguém me para na rua para conversar.

    O que costumam lhe dizer? Agradecem pelo trabalho que faço hoje, pedem dicas de como se comportar nas redes, de como garantir a segurança de informações pessoais.

    Os cientistas de dados por trás das campanhas políticas de Trump, de Bolsonaro, de populistas na Itália, na Inglaterra, em tantos países, defendem uma ideologia específica ou topam tudo por dinheiro? Alguns resolvem tomar posição, como decidi fazer agora e como observei que era o caso dos democratas na corrida presidencial de Obama. A maioria, porém, não demonstra opinião política. Recordo-me de uma reunião em Nova York em que funcionários da Cambridge abordaram tanto os envolvidos na campanha de Trump quanto os que trabalhavam nas de Hillary e Bernie Sanders. Antes das eleições de 2016, oferecemos os serviços aos três. Ficamos com quem aceitou executar as táticas e pagou bem por isso. No fim, a nova lógica de fazer política beneficia candidatos que não veem problema em adotar táticas sujas e, principalmente, desembolsar muitos dólares para arcar com elas.

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    Trump teria ganhado sem o auxílio da Cambridge? Ele levou a eleição por uma margem mínima. Então, aposto que, se qualquer fator que o guiou para a vitória fosse tirado de jogo, acabaria derrotado, sim.

    E agora, o que pode ser feito? As redes sociais foram criadas para capturar a atenção e o tempo dos usuários, mesmo que de forma apelativa, com o único objetivo de lucrar cada vez mais. Assim cresceram rapidamente. Essa lógica, entretanto, favoreceu a ação suja dos políticos populistas e extremistas. É preciso que Facebook e companhia assumam seus erros para depois transformarem a forma como fazem negócios. Aí conseguiríamos extrair o que há de mais positivo no uso dessas tecnologias. Hoje, no entanto, a balança pesa para o lado oposto. As redes têm feito mais mal do que bem. Os algoritmos deveriam ser utilizados para, por exemplo, promover os direitos humanos, a ciência, a diversidade.

    Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670

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